Carlos Monteiro: A infiltração conflituosa da indústria de alimentos ultraprocessados em instituiçõe
- Por ONutricional
- 14 de nov. de 2017
- 4 min de leitura

Do Nupens, por Carlos A. Monteiro*
*Departamento de Nutrição, Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo
"Em 9 de agosto de 2017, a revista American Journal of Clinical Nutrition (AJCN), um dos periódicos científicos editados pela Sociedade Americana de Nutrição, publicou um comentário que se propunha a fazer uma ‘avaliação crítica’ de um novo sistema de classificação de alimentos e, em particular, da relevância para a Saúde Pública de alimentos ultraprocessados, um dos quatro grupos da nova classificação. A classificação, denominada NOVA, foi desenvolvida por pesquisadores brasileiros da Universidade de São Paulo. Em 2009, foi formalmente apresentada em um artigo publicado pela revista Public Health Nutrition, um dos periódicos científicos da Sociedade Britânica de Nutrição.

Desde então, vem sendo utilizada em documentos técnicos de organismos internacionais como a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) e a Organização Pan-americana de Saúde (OPAS), em guias alimentares nacionais, como os do Brasil e do Uruguai, e em mais de meia centena de estudos publicados em revistas científicas internacionais de grande impacto. Esses estudos, conduzidos por pesquisadores de vários países, têm comprovado o vertiginoso crescimento mundial do consumo de alimentos ultraprocessados, como refrigerantes, snacks industrializados e refeições congeladas, e o sistemático impacto negativo desses alimentos sobre a qualidade nutricional da alimentação humana e sobre o risco de obesidade, hipertensão, síndrome metabólica, dislipidemias e outras doenças crônicas não transmissíveis.

A conclusão da ‘avaliação crítica’ publicada na AJCN foi essencialmente de que a classificação não tinha maior utilidade (On balance, therefore, there seems to be little advantage from the useof the NOVA classification compared with the current epidemiologic approach). Entretanto, a leitura do comentário pelos autores da classificação e por pesquisadores que a utilizaram identificou que a ‘avaliação crítica’ continha numerosos erros, imprecisões e omissões, além de não oferecer evidências que sustentassem sua conclusão. Em 2 de setembro de 2017, em nome desses pesquisadores, escrevi uma carta para o Editor da revista AJCN onde detalhei as falhas identificadas no comentário. Como de praxe, solicitei que a carta fosse publicada na seção de correspondências ao Editor. Alegando que a AJCN não publicava cartas sobre comentários, pois esses seriam apenas ‘opiniões’, o Editor recusou-se a publicar a carta.
Voltei a escrever ao Editor da revista AJCN solicitando a publicação de uma errata que reconhecesse pelo menos as falhas inquestionáveis do comentário, incluindo erros grosseiros na descrição da classificação NOVA e a utilização de referências bibliográficas totalmente estranhas ao tema. Também solicitei que a declaração de conflito de interesses dos autores fosse corrigida – o autor principal do comentário havia declarado ser consultor da empresa Nestlé, mas o segundo autor não declarou ter sido empregado da mesma empresa entre 2010 e 2014 e o quarto autor não declarou ser consultor de empresa de relações públicas que atendia a empresa McDonald’s. O Editor novamente rejeitou meu pedido alegando desta vez que eu deveria escrever diretamente para os autores para que ‘entrássemos em acordo’ quanto aos erros e que a eles caberia solicitar a publicação de eventual errata. Disse também que iria verificar a não declaração de conflitos de interesses dos dois autores, o que aparentemente ainda não o fez.
Tendo tido conhecimento deste episódio, a Editora da Public Health Nutrition convidou-me para submeter à sua revista comentário que respondesse a ‘avaliação crítica’ publicada na AJCN. Este comentário, intitulado Ultra-processing. An odd appraisal, foi publicado no dia 11 de novembro de 2017, como parte de um número especial da revista dedicado a estudos sobre alimentos ultraprocessados.

No comentário, elaborado em coautoria com vários pesquisadores, enumeramos os erros, imprecisões e omissões da ‘avaliação crítica’, não esperados em artigos científicos submetidos à avaliação por pares, e mostramos que sua principal conclusão – a não utilidade da classificação NOVA e do conceito de alimentos ultraprocessados – não tinha amparo em evidências. Detalhamos e comprovamos também a omissão do conflito de interesses de dois dos seus autores e finalizamos o comentário discutindo a responsabilidade que revistas científicas deveriam ter quanto a publicação de visões opostas no exame de tópicos controversos.
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Infelizmente, a ‘avaliação crítica’ publicada na revista AJCN vem sendo utilizada no sentido de desacreditar a classificação NOVA e os resultados dos vários estudos que mostram os prejuízos à saúde humana decorrentes do consumo excessivo de alimentos ultraprocessados. Isso ocorreu, por exemplo, durante uma atividade paralela realizada na véspera do início do Congresso Internacional de Nutrição, realizado em Buenos Aires, em outubro de 2017. Nesta atividade, denominada Processed foods: food technology for better nutrition, uma das expositoras chegou a exibir imagem onde uma cópia da primeira página da ‘avaliação crítica’ destacava a frase ‘The use of NOVA classification in public policies is irresponsible’. Esta expositora apresentou-se como presidente de uma associação argentina que congrega tecnólogos de alimentos e indústrias de alimentação (incluindo, entre essas, a empresa Coca-Cola Argentina). Felizmente, esta foi uma nota dissonante do congresso de Buenos Aires, onde dezenas de novos estudos sobre o consumo de alimentos ultraprocessados foram apresentados e debatidos.
Concluímos este texto convidando todos a lerem o comentário Ultra-processing. An odd appraisal e a visitarem o site da Public Health Nutrition onde encontrarão os demais artigos publicados no número especial da revista dedicado a estudos sobre alimentos ultraprocessados. Esperamos, ainda, que este episódio possa gerar uma discussão produtiva sobre a conflituosa ecrescente infiltração da indústria de alimentos ultraprocessados em instituições acadêmicas,sociedades profissionais e revistas cientificas."
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