Um Percurso Literário como Sugestão de Leituras e de Filmes
- Joralima
- 27 de jan. de 2020
- 11 min de leitura

Fonte: https://www.uai.com.br/app/noticia/artes-e-livros/2019/02/12/noticias-artes-e-livros,241547/edicao-de-luxo-de-grande-sertao-veredas-provoca-polemica-nas-redes.shtml
Por Jorge de Lima
Ao receber o convite para participar do 2º. Seminário de Literatura da Escola Municipal José Cesário Pereira Filho – uma unidade escolar mantida em um bairro periférico de uma pequena cidade do litoral sul de São Paulo – fui tomado por dois sentimentos extremamente positivos. Primeiro, de gratidão pelo convite, pois literatura é um dos assuntos mais fascinantes que existe e falar de literatura é sempre muito enriquecedor. O segundo sentimento foi de surpresa, ao me deparar com a inusual e diversificada lista de títulos de livros. Os alunos fizeram excelentes escolhas, optando por textos consagrados e também por textos atuais: ponto para eles e, claro, ponto para os professores da escola!
Antes de me deparar com a lista, eu tinha em mente falar sobre a importância de diversificar as escolhas, mas, diante da evidência incontestável de diversidade, resolvi falar sobre um percurso literário a partir da própria lista de livros trabalhados pelos alunos. A minha ideia era, a partir de cada título, fazer um caminho por livros que li (ou que pretendo ler) e compartilhar essas leituras (e esses desejos de leituras), de modo a servir de incentivo e de convite, esperando que, ao término da minha singela apresentação, tivéssemos percorrido, juntos, um agradável percurso literário.

O primeiro livro que observei foi “Droga Disfarçada de Estudante”. Confesso que eu não conhecia o autor e que tampouco eu tinha notícias a respeito desse título. Conforme minha rápida pesquisa na internet, ele foi escrito por Fillipe Mafra. Da minha rápida pesquisa, compreendi, se não me engano, que o texto aborda o consumo de drogas de abuso – assunto que é especialmente delicado no universo escolar e também bastante importante entre os jovens.
Não sei qual é o caráter do livro a respeito da questão e também não tive (tampouco tenho) interesse em ser panfletário, apresentando opinião contra ou a favor das tais substâncias: essa tarefa pertence ao livro, pertence ao autor e, principalmente, pertence ao leitor. Sim, porque a leitura de um livro une o autor ao leitor, ambos se irmanam na obra: autor e leitor se associam a cada livro.
Como percurso literário, veio-me à mente uma famosa obra da minha juventude: “Eu, Christiane F., 13 Anos, Drogada e Prostituída”. Um livro alemão lançado em 1978, escrito pelos jornalistas Kai Herrmann e Horst Rieck, em colaboração com a própria Christiane F. Trata-se do relato de envolvimento da garota do título com drogas e prostituição durante sua adolescência.
A repercussão foi enorme e chegou a ganhar as telas do cinema em 1981, sendo rodado na Alemanha antes da Queda do Muro de Berlim. Eu tive oportunidade de conhecer Berlim no final dos anos 2010: uma cidade fascinante que ainda guarda as marcas do muro que dividiu o país em dois e que ainda tinha um pouco do ar retratado no filme (que, na sua versão original, está disponível na internet – é só procurar).
Na lista dos alunos, o título do livro “A Máquina do Tempo” despertou minha curiosidade.

Ao procurar saber sobre a obra, descobri que trata-se de uma história escrita por Herbert George Wells – ou H. G. Wells, como é mais conhecido. Esse autor é simplesmente o gênio por trás de uma obra icônica da literatura e da cultura contemporânea: “A Guerra dos Mundos”.
Sou apaixonado por essa história! E talvez seja repetitivo mencionar o incidente em torno dela, mas seria desperdício não falar sobre – principalmente para o caso de haver alguém que (ainda) não a conheça.
A história “A Guerra dos Mundos” foi transmitida por rádio – em uma época que a televisão ainda não era popular –, por Orson Welles, o brilhante diretor do mais aclamado filme de todos os tempos: “Cidadão Kane”. Dada a estratégia de dramatização adotada para contar a história no rádio, milhões de ouvintes acreditaram que estavam acompanhando a notícia da invasão do planeta Terra por alienígenas! E esses ouvintes entraram em real desespero e congestionaram os serviços de segurança dos Estados Unidos.
“A Guerra dos Mundos” teve pelo menos duas boas versões no cinema, a última delas em 2005, pelas mãos do renomado diretor Steven Spielberg, com o ator Tom Cruise, no papel principal, e a então jovem atriz Dakota Fanning no papel da filha do protagonista. Nesta última versão, a história se passa em algumas partes dos Estados Unidos e não em Londres – cidade originalmente citada no livro, a qual também tive o prazer de conhecer. Não sei porque cargas d’água Spielberg trocou as cidades da história – talvez porque acredite, ele e praticamente todos os diretores de Hollywood, que os alienígenas só gostem de invadir os EUA! Ledo engano. Se eu fosse um “alien”, eu certamente preferiria invadir a Europa.

Fiquei particularmente intrigado ao ver “Um Estudo em Vermelho” na lista dos livros lidos pelos alunos. A obra, escrita pelo genial Sir Arthur Conan Doyle, enquadra-se na categoria de romance policial. Eu pertencia à igreja dos mórmons à época que li o livro e achei uma grande coincidência a obra trazer referências a esta religião – que não é muito comum hoje e certamente não era famosa naquela época. Os alunos, quando trataram do livro, certamente citaram que se trata do texto que marca o encontro do detetive, Sherlock Holmes, com o seu grande companheiro de aventuras, o igualmente famoso Dr. Watson – logo, é uma obra importante dentro do conjunto de livros sobre o famoso detetive londrino.
Vale muito a pena ter todos os demais romances e contos escritos por esse brilhante autor que, além de escrever, também era médico. Atribui-se a Doyle a popularização da datiloscopia: o uso da impressão digital para identificar criminosos.
Como percurso literário, eu optei por falar de outro escritor inglês. Na verdade, escritora: Agatha Christie. Ela escreveu depois de Conan Doyle e, de certa maneira, se beneficiou da popularização do gênero “romance policial”. Em suas obras, inclusive, era comum

haver citações ao detetive Sherlock Holmes, mas sempre tratado como se Holmes fosse apenas um personagem (e os personagens de Christie fossem de verdade – uma ironia dela, claro).
Das mãos de Agatha Christie saíram mais de 80 obras, sendo celebrada como a mulher que mais vendeu títulos no mundo (no seu centenário, falava-se em mais de 1 bilhão de exemplares). Os ingleses, como se sabe, são muito organizados e, esperadamente, em certo momento, estabeleceram regras para os romances policiais – como se a arte precisasse sempre ser contida para não extravasar certos “limites”.
Tendo escrito tantos livros, certamente chegaria o momento em que Agatha Christie, como uma boa artista, teria que romper com algumas dessas regras.
E ela fez isso em pelo menos três livros: “O Assassinato no Expresso do Oriente”, “O Assassinato de Roger Ackroyd” e “O Caso dos Dez Negrinhos”.
Não me cabe aqui relevar o enredo de nenhuma dessas histórias. Mas o que pode ser dito é o seguinte: em um dos livros, há vários culpados por uma mesma morte. Em outro, o culpado por vários mortes morre antes de várias das suas própria vítimas e, finalmente, em outro, o culpado verdadeiramente ajuda a desvendar o crime.
Pelo que se sabe, os escritores de romances policiais ingleses ficaram enfurecidos com a Dama do Crime...
Vale muito a pena ler qualquer um desses três livros, mas eu até sugiro que se comece por outras histórias, para se apreciar esses títulos quando já se estiver familiarizado com sua escrita. Agatha Christie, além de produtiva escritora, foi uma exímia descritora de atmosferas e a gente realmente entra nas suas histórias quando as lê. Vários de seus livros foram levados ao cinema com relativo sucesso. Um dos maiores sucessos no cinema é sobre o livro “O Assassinato no Expresso do Oriente” – que recentemente ganhou mais uma versão, desta vez dirigida por Kenneth Branagh. Eu prefiro uma clássica, em preto e branco, de 1974, dirigida por Sidney Lumet. Aliás, cerca de uns 5 anos atrás, tive a grata oportunidade de conhecer a estação de onde partia o Expresso do Oriente, em Istambul, e pude testemunhar a qualidade descritiva de Agatha Christie e sentir o ar nostálgico do filme de Sidney Lumet. Uma experiência fascinante...
No Brasil, “O Caso dos Dez Negrinhos” chegou a ter outro título, por influência de certos descompassos nos Estados Unidos, sendo chamado de “O Caso dos Dez Indiozinhos”. Mas, essa mudança não foi suficiente para apaziguar as questões étnicos-raciais e o livro finalmente encontra-se com o título “E não sobrou nenhum” – o que é praticamente um “spoiler”.
Voltando à lista dos alunos, eu não me lembrava de ter lido o conto “O Gato Preto”, escrito por Edgar Allan Poe, mas fiquei feliz em ver um título desse brilhante autor na lista deles. Eu cheguei a Edgar Allan Poe tardiamente. E, embora seja um autor de língua inglesa, eu o conheci nas minhas aulas de literatura em língua espanhola, por conta de uma professora chilena nos meus tempos de faculdade. Tal percurso causou um efeito muito interessante: me acostumei a ler Poe em espanhol e, desde então, parece-me que na língua de Cervantes se conserva um pouco mais a atmosfera de mistério do que no idioma de Camões.

A obra “O Corvo” é uma das mais famosas de Edgar Allan Poe e já foi parodiada até no desenho animado “Os Simpsons”. Além dela, eu gostaria de sugerir a leitura de um outro texto dele, também muito conhecido: “A Queda da Casa de Usher”. Nesse conto, o narrador visita a casa de um amigo enquanto um dos personagens, que sofre de catalepsia, é sepultado vivo, tendo um desfecho completamente inesperado. Uma parte do argumento dessa história foi aproveitada em um filme com a atriz Cassandra Peterson – que fez a divertidíssima “Elvira, a rainha das trevas”. Trata-se do quase igualmente divertido “As Loucas Aventuras de Elvira”. Ambos os filmes estão disponíveis na internet.
Por falar em língua espanhola, deixei propositadamente o título “Autobiografia do Poeta-Escravo” para fechar a parte desse percurso literário que, até aqui, tratou apenas dos autores estrangeiros.
Eu confesso minha total ignorância sobre esta obra de Juan Francisco Manzano e fiquei com uma imensa vontade de aprender sobre essa obra ímpar na literatura mundial, pois, como o próprio título informa, trata-se de um singular caso de registro a partir do indivíduo que foi escravizado na América colonial.
Da minha parte, imagino que uma obra que talvez dialogue com esse texto de Manzano seja “A Cor Púrpura”, romance epistolar escrito por Alice Walker, lançado originalmente em 1982. A história de Alice Walker é fictícia e não é contemporânea ao relato de Manzano, mas mostra, nos Estados Unidos da primeira metade do século XX, o quanto ainda estavam pertinentes as questões relacionadas ao passado escravista do continente americano. Seu livro também ganhou as telas de cinema pelas mãos de Steven Spielberg.
Ao falar de “Triste Fim de Policarpo Quaresma”, livro escrito por Lima Barreto, além de começar a tratar dos autores em língua portuguesa, também quero tratar de um tema caro na formação do leitor: o prazer da leitura. Ou, melhor dizendo: o direito de ler por prazer.
Digo isso porque li esse livro apenas uma vez, por conta dos exames vestibulares, e não gostei da história! Isso produziu em mim uma aversão pessoal ao autor, Lima Barreto, que certamente significou-me um prejuízo pessoal: deixei de ler as outras obras de Barreto e, com isso, perdi a oportunidade de conhecer melhor esse importante autor brasileiro (falha que já comentei aqui neste espaço por ocasião do Treze de Maio).
Daí minha recomendação: o leitor deve buscar, sempre que possível, livros que agradem seu paladar, que despertem seu interesse. Porém, é evidente que também temos que dar uma chance “ao livro desconhecido”. Ler pelo menos as primeiras páginas ou parar um pouco, mas voltar a ler em outro momento. A literatura é tão vasta, as opções são tantas, que não se justifica a leitura desprazerosa. Exceto, claro, quando estamos diante da função didática de uma certa leitura: uma prova, um trabalho, um concurso vestibular. Porém, que isso seja exatamente assim: uma exceção.
Encontrar três obras de Machado de Assis na lista dos livros dos alunos não foi uma surpresa, por conta da evidente qualidade desse escritor fluminense. Os três romances, “Dom Casmurro”, “Quincas Borba” e “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, são absolutamente importantes dentro da literatura brasileira.
Eu não li “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, mas sei que se trata da famosa obra do defunto-autor, que narra do túmulo sua história. Por conta disso, me lembrei de outro importante autor brasileiro, Jorge Amado, e seu interessantíssimo texto: “A morte e a morte de Quincas Berro D’Água” – a deliciosa história de um cadáver que circula pela cidade na companhia de seus amigos, numa última noitada. Também nesse quesito “história de mortos entre os vivos”, vale lembrar da extraordinária história de outro gigante da literatura brasileira, Érico Veríssimo: “Incidente em Antares”. Nesta história, os cadáveres que estão insepultos, por conta da greve dos coveiros da cidade, resolvem se vingar dos vivos, voltando a tratar pessoalmente de seus assuntos pendentes em vida.
Sobre Machado de Assis, cabe ainda falar da importância da sua produção contista. Aliás, eu, particularmente, prefiro mais os contos deste autor do que seus romances. Dentre os contos, um dos meus preferidos é “Noite de Almirante”, que fala sobre desilusões amorosas; contudo, um dos mais famosos é “Missa do Galo”. Vale a pena ler Machado, sempre!
Por falar em conto, vi que o título “À Sombra do Cipreste”, refere-se a um volume de contos escritos pelo brasileiro Menalton Braff – autor que eu não conhecia (e, na hora, só soube citar-lhes outro livro da Agatha Christie, “Cipreste Triste” – a coordenadora do evento deve ter ficado decepcionada comigo... Mas é que essa escritora inglesa é boa demais!).

Ler Clarice Lispector não é tarefa das mais fáceis. A brilhante escritora tem uma redação muito peculiar, que pode dificultar um pouco o entendimento dos leitores menos calejados, daí que eu fiquei muito curioso de ouvir como os alunos se deram com o livro “Laços de Família”, que eu li há muito tempo. Dentre poucas coisas, lembro-me que há uma história sobre galinhas. Aliás, Clarice volta e meia tratou de galinhas ou de ovos em seus contos; às vezes, utilizando-os para lançar os leitores em inquietantes reflexões. É o caso do conto “Uma História de Tanto Amor”, sobre uma menina que foi dona de três galinhas – e que saiu publicado no delicioso livro “Felicidade Clandestina”: gosto de todos os contos desse volume.
Antes de comentar o último livro desta lista dos alunos, vale a pena traçar um paralelo entre “O Quinze”, de Raquel de Queiroz, que foi lido pelos alunos da escola, com duas histórias de Graciliano Ramos: “São Bernardo” e “Vidas Secas”.
São livros que, a exemplo da obra de Rachel de Queiroz, falam do nordeste brasileiro, da realidade sofrida daquela importante região do Brasil. São histórias importantes para entendermos nossa cultura, nosso mundo atual, a desigualdade que historicamente marca o país e seu povo. Particularmente no caso de “Vidas Secas”, vale a pena registrar meu carinho pela cachorra Baleia, tão importante no livro que chegou a ser considerada o personagem bicho mais importante da literatura brasileira. Vale muito a pena conhecê-la.
Guimarães Rosa é simplesmente brilhante. E falar, mesmo rapidamente, desse autor me traz uma alegria pessoal imensa, enquanto professor, enquanto leitor e enquanto brasileiro.
Fiquei muito feliz ao ver o título “Primeiras estórias” nas lista de livros lidos pelos alunos da escola. Nesse livro, há vários dos contos famosos de Guimarães Rosa: “Famigerado”, “A Terceira Margem do Rio” e “Sorôco, sua mãe e sua filha”.
Dentre os escritos de Rosa, há um conto, do livro “Nova Velha História”, que se chama “Fita Verde no Cabelo” – uma interessante versão da popular história “Chapeuzinho Vermelho” –, que também fala do processo de amadurecimento da garota título; de quando ela deixa a condição de menina para ingressar na condição de adulta. Recomendo.
Não se pode fazer um panorama literário, que inclua Guimarães Rosa, sem falar da obra-prima “Grandes Sertões: Veredas”. Para os jovens, meu conselho: não se assustem com o tamanho do livro. Parece grande, mas, à medida que cada leitor adentra na história, percebe várias outras histórias sendo contadas e, então, descobre-se envolvido pela sedutora fala do narrador: Riobaldo. O livro, a despeito de outras muitas qualidades, tem um peculiaridade: trata-se de um diálogo entre Riobaldo e seu interlocutor, mas, em momento algum, lemos as palavras desse interlocutor. O que temos, o tempo todo, é apenas a fala de Riobaldo.
Por conta desse livro, também compartilho um importante conselho de leitor experiente: não se deve ler muito a respeito de um livro antes de primeiramente o ler. Eu, por exemplo, não leio nem mesmo as sinopses, os tais resumos que aparecem na capa ou nas orelhas dos livros. Digo isso porque, no caso de “Grandes Sertões: Veredas”, é muito fácil encontrar por aí a informação sobre um detalhe crucial da história que, no livro, só é revelado simplesmente na última página, quase que nos últimos parágrafos. E esse detalhe atormenta o personagem durante a obra inteira. É uma pequena maldade falar dele ao leitor que ainda não adentrou no livro. Em outras palavras: a literatura de verdade mora dentro dos livros e não em resumos, sinopses, comentários em vídeos curtos disponíveis na internet. Fuja dos atalhos!
Não se deve trocar as páginas de um livro por nenhuma outra opção, pois, quando termina a leitura de um livro, o bom leitor transforma-se em coautor daquela história que acabou de ler, passando a ter a sua própria versão da história que leu, pois cada leitor percebe o livro do seu jeito, a partir do seu conhecimento de mundo, das suas experiências, dos seus desejos, das suas dores, da sua curiosidade pela vida. E esta é a matéria-prima de todas as histórias já escritas e que estão por serem escritas: a vida.
Mongaguá, 25 de novembro de 2019.
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