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Sobre o projeto “Alimento para Todos”, biopolítica e violação de direitos

  • Vanessa Daufenback
  • 14 de out. de 2017
  • 6 min de leitura

Por Vanessa Daufenback

O legado, a continuidade e o aprimoramento das Políticas de Segurança Alimentar e Nutricional no Brasil estão sendo colocados em risco pelo projeto "Alimento para Todos", lançado no último domingo (08/10/17) no município de São Paulo, pela gestão do prefeito João Dória (PSDB).

Este projeto tem o objetivo de fornecer um produto alimentício de caráter liofilizado, intitulado "Allimento", fruto de reprocessamento de alimentos com "datas críticas de seu vencimento ou fora do padrão de comercialização, como uma forma de se evitar desperdícios e garantir segurança alimentar a populações vulneráveis através da produção deste "granulado nutritivo", a ser adicionado em refeições ou utilizado na fabricação de outros alimentos. Ele seria destinado a populações vulneráveis atendidas em equipamentos da Prefeitura Municipal.

Tendo em vista a perspectiva deste projeto de expansão a outros municípios e de transformação em projeto de lei federal, faz-se necessária uma tentativa de esclarecimento sobre possíveis violações legais e questionamentos nutricionais, sociais e políticos que podem se seguir à sua execução:

1) Este projeto consiste em clara violação ao Direito Humano à Alimentação Adequada (Emenda Constitucional N. 64, que inclui a alimentação no artigo 6º da Constituição Federal), pois deixa de respeitar a garantia de alimentação através de alimentos frescos e seguros, que respeitem a cultura e as necessidades da população;

2) Coloca-se em risco a Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) desta população vulnerável. Aqui deve-se lembrar da definição de SAN: "realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis", e de que ela está garantida pela Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (LOSAN, Lei N. 11.346/2006). Sejam escolares, pacientes de hospitais ou mesmo famílias vulneráveis atendidas nos CRAS, não fica claro como o consumo deste "granulado" garantiria a erradicação da fome ou superação da carência de micronutrientes. Quais alimentos serão utilizados? Qual o critério de escolha desta instituição?

Sabe-se que a liofilização – processamento "escolhido" para a produção do “alimento” – é um tipo de processamento de alto custo, e isto contradiz a suposta prática de contenção de custos da alimentação escolar, na qual se marca a mão dos alunos para não se repetir a alimentação. Do ponto de vista de sua premissa biológica, se o debate é sobre nutrientes, então quais as carências a serem supridas e qual o perfil desta população? Foi realizado algum levantamento epidemiológico específico que justifique esta suplementação? Se a perspectiva é suplementação, temos programas nacionais de suplementação de micronutrientes (ferro, vitamina A, iodo, etc...) na Atenção Básica.

Por fim, o consumo deste produto liofilizado vai na contramão da definição de SAN por não estar de acordo com o contexto cultural e de promoção de práticas alimentares de saúde, pois reforça a ideia de suplementação baseada em nutrientes. A ausência de regras e parâmetros para o uso deste composto também colocam em cheque a legitimidade desta prática. Se ele substituir o uso de alimentos in natura na alimentação escolar, por exemplo, pode ir de encontro às diretrizes da Resolução N. 26 de 17 de junho de 2013, que preconiza o uso destes alimentos in natura e restringe a compra de produtos em pó a 30% do orçamento.

3) Este programa confronta as estratégias de SAN construídas através do nosso Sistema de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN), que foram articuladas nos últimos anos de forma tripartite, através da atuação de diferentes setores da sociedade por meio dos Conselhos de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA) dos municípios, estados e no nível nacional. O objetivo destes programas e políticas acordados pelo SISAN (PNAN e o PAA – Programa de Aquisição de Alimentos, por exemplo) é o estabelecimento de uma cadeia curta de produção, venda e consumo de alimentos para favorecer a sustentabilidade da produção e do consumo de alimentos, de caráter local, provindos de agricultores familiares, com alimentos culturalmente significativos, livres de contaminantes, que proporcionem acesso facilitado principalmente a populações vulneráveis. Portanto, o projeto "Alimentos para Todos" está pautado numa ideia parcial de sustentabilidade, pois beneficia somente parcelas da grande indústria e comércio de alimentos, retirando do estado o papel de garantir o fornecimento de alimentos verdadeiros e regionais e beneficiar agricultores familiares e/ou agroecológicos.

4) Se pensarmos pela lógica da intersetorialidade, tanto o PNAE quanto o PAA constituem-se também como importantes estratégias de enfrentamento da dupla carga de doenças atuais (obesidade e desnutrição) e de promoção da saúde, ao proporcionarem a alimentação saudável e adequada e pautarem ações de educação alimentar e nutricional nos âmbitos escolar, hospitalar, terapêutico e assistencial. Deste modo, o fornecimento da alimentação de forma ultraprocessada pode comprometer os princípios do Novo Guia Alimentar da População Brasileira, pois deixa de estimular o consumo pleno da "comida de verdade" para ofertar nutrientes de forma isolada. Neste sentido, um questionamento possível seria sobre a possibilidade de realização de ações de educação alimentar e nutricional nestes âmbitos, pois a adição deste composto liofilizado pode associar a ideia da alimentação como consumo de nutrientes e não da comida de verdade. Por exemplo, se um pão adicionado deste composto é visto como "nutritivo" e suficientemente adequado enquanto alimento, como podemos ensinar os nossos escolares ou outros grupos sociais sobre a priorização do consumo de alimentos in natura ou minimamente processados, como vegetais, carnes, arroz e feijão? Portanto, o que está em jogo também é a definição do que seriam alimentos adequados e saudáveis.

5) Este projeto significa também um retrocesso às políticas de Segurança Alimentar e Nutricional implantadas pela gestão anterior, que garantiam o acesso a alimentos adequados através de seu fornecimento pela agricultura familiar, cumprindo as diretrizes do PNAE, que exige a compra de no mínimo 30% dos recursos destes agricultores (Lei N. 11947, de 16 de junho de 2009).

Dória também tem ignorado a Lei Municipal N. 16.140, de 17 de março de 2015, que dispõe sobre obrigatoriedade de inclusão de alimentos orgânicos ou de base agroecológica na alimentação escolar no âmbito do Sistema Municipal de Ensino de São Paulo. Segundo o site Rede Brasil Atual, neste ano, no município de São Paulo, ainda não foi realizada a chamada para este tipo de compra. Ou seja, por trás da ideia de sustentabilidade de um projeto colocado em prática por um "gestor empresarial e bem-sucedido", avesso à "política tradicional", existe um projeto de descaracterização de programas anteriores. Se pensarmos no nível nacional, no qual programas de SAN como o PAA sofreram redução de 30% de investimentos, podemos refletir sobre o cenário de descaso para com o SISAN, que por sua vez é fruto da participação ativa da sociedade civil organizada através dos Conselhos de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA).

6) A instituição terceirizada pela prefeitura de São Paulo para conduzir este processo, a Plataforma Sinergia, possui a égide de "notória especialização em processos que eliminam os prejuízos decorrentes do desperdício de alimentos", além de patentes e “know-how” em processos e tecnologias de beneficiamento de alimentos", como se lê no site desta Prefeitura. Dentre seus objetivos estariam a destinação de "alimentos gratuitos às populações em situação de insegurança alimentar; redução de custos privados associados ao descarte de alimentos; redução de custos públicos; evitar o desperdício dos recursos naturais, energia e insumos na cadeia de alimentos; benefícios colaterais na Saúde, Educação, etc".

Estes objetivos demonstram a clara intenção de desresponsabilização do Estado pela segurança alimentar e nutricional das populações vulneráveis, que passa a ser delegada a instituições cujos objetivos de bem-estar são "colaterais”, representando um objetivo secundário em seu escopo de ações, voltada à “redução de custos”. Representa também não só o retrocesso, mas o desrespeito político e institucional a conceitos e políticas já estabelecidos de forma democrática, simbolizando a tomada de decisões em políticas públicas na era pós-golpe. Elege-se, desse modo, um "notório saber", porém privado de ampla opinião da sociedade civil e científica; deslegitimam-se políticas de sucesso ou se deixa de fortalecer políticas em andamento (os programas Banco de Alimentos e Mesa Brasil, por exemplo são destinados ao combate do desperdício) e beneficia-se os interesses econômicos da classe política empresarial que tem alavancado e eleito tais perfis políticos e que se dizem "contra a política e tudo o que está aí".

Frente a este panorama, tanto os objetivos quanto a delegação deste programa a esta instituição se tornam, portanto, obscuros quando pensamos do ponto de vista legal (SAN e DHAA), porém claro quando se pensa nos benefícios financeiro-empresarial. No limite, este perfil de políticos e práticas políticas demonstram o caráter assistencialista evidenciado através de terceirizações e ações "benevolentes", cujos fins concretos não ficam claros do ponto de vista da população assistida e que levarão a população vulnerável de São Paulo a se alimentar com baixa qualidade, consistindo numa ameaça ao cenário positivo e concreto das políticas de SAN construídas no Brasil nos últimos anos.

Em resumo, a perspectiva de realização deste projeto traz à tona uma série de questionamentos sobre a definição bio-política do conceito de alimento saudável (comida de verdade x comida liofilizada), sobre o desmonte do Estado de bem-estar social (no qual há recusa da responsabilização do Estado sobre o bem-estar da população) e sobre a intensificação da violação de direitos na era pós-golpe no Brasil.

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