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Um olhar sobre a agenda de alimentação e nutrição nos trinta anos do Sistema Único de Saúde

  • ONutricional
  • 9 de jul. de 2018
  • 14 min de leitura

Por Patricia Constante Jaime*, Denise Costa Coitinho Delmuè**, Tereza Campello***, Denise Oliveira e Silva*** e Leonor Maria Pacheco Santos****

*Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo; **Consultora independente em nutrição e sistemas alimentares. Genebra, Suíça; ***Escola Fiocruz de Governo, Fiocruz, Brasília; ****Faculdade de Ciências da Saúde, Universidade de Brasília. Brasília.

No Brasil, o direito à saúde e à alimentação são garantias constitucionais inseridas entre os direitos sociais. A alimentação adequada é um requisito básico para a promoção e a proteção da saúde, sendo reconhecida como um fator determinante e condicionante da situação de saúde de indivíduos e coletividades.

A alimentação e a nutrição, enquanto área temática no Ministério da Saúde, mas também como expressão de atores sociais historicamente involucrados no tema, participou ativamente das discussões da reforma sanitária e estabelecimento do Sistema Único de Saúde (SUS). Exemplo disto foi a 1. Conferência Nacional de Alimentação e Nutrição, realizada em 1986, como desdobramento e em seguimento imediato da 8. Conferencia Nacional de Saúde. Essa conferência representou, por um lado, o engajamento da área de alimentação e nutrição na reforma sanitária e, por outro, lançou um conjunto de proposições que se tornaram referências permanentes em Segurança Alimentar e Nutricional.

Desta forma, a agenda de alimentação e nutrição tem sido proposta e defendida de forma transversal às demais ações de saúde, com formulação, execução e avaliação dentro das atividades e responsabilidades do sistema de saúde, mas com contornos e intersecções com o campo amplo e intersetorial da Segurança Alimentar e Nutricional.

Segundo a Lei Orgânica da Saúde, estão incluídas, no campo de atuação do SUS, a vigilância nutricional e a orientação alimentar. A partir deste entendimento e compromisso inicial foi possível ir além e propor uma política específica para o tema, a Política Nacional de Alimentação e Nutrição (PNAN), aprovada em 1999 e atualizada em 2011. Essa política norteia a organização e a oferta da atenção nutricional, tendo como propósito a melhoria das condições de alimentação, nutrição e saúde da população brasileira, mediante a promoção de práticas alimentares adequadas e saudáveis; a vigilância alimentar e nutricional; e a prevenção e o cuidado integral dos agravos relacionados à alimentação e nutrição, contribuindo para a conformação de uma rede integrada, resolutiva e humanizada de cuidados.

Estando inserida ao longo dos trinta anos do SUS, essa agenda temática tem gradualmente superado uma posição marginal ou paralela ao sistema, para outra com melhor entendimento de seu papel e protagonismo como componente essencial na atenção integral em saúde. Assim, apresenta-se como elo potente de articulação entre a saúde e outros setores relacionados ao Direito Humano à Alimentação Saudável (DHAA).

O presente artigo, na forma de ensaio, apresenta e discute a agenda de alimentação e nutrição no SUS e sua interface com a Segurança Alimentar e Nutricional, seus marcos históricos, avanços e desafios. Para isso, baseamo-nos na pesquisa biográfica e documental e, sobretudo, no resgate das experiências e percepções das autoras que, em diferentes momentos e contextos, foram e são sujeitos da agenda de alimentação e nutrição no Brasil. Reforçamos assim a ideia do SUS, com suas conquistas e imperfeições, como um sistema vivo e derivado do compromisso técnico-ético-político dos gestores, dos trabalhadores, da academia e da sociedade como um todo. Desta forma, buscamos contribuir com o debate sobre a trajetória brasileira de construção de um sistema público de proteção social que se comprometeu com a realização do direito humano à saúde e, intersetorialmente, à alimentação adequada.

O que veio com o SUS?

Primeiramente, é preciso reconhecer que a agenda de alimentação e nutrição nas políticas públicas brasileiras precede o SUS. Sua origem remete à década de 1930, marcada, por um lado, pelo nascimento do pensamento trabalhista no Governo Vargas e, por outro, à pioneira denúncia acadêmica de Josué de Castro de que a fome e suas diferentes formas de expressão no corpo humano (como desnutrição e carências de micronutrientes) eram provenientes de desigualdades sociais, decorrentes de um modelo econômico injusto e excludente. Desde então, o Estado Brasileiro tem experimentado diferentes modalidades de intervenção e programas sociais no campo da alimentação e nutrição.

Um acontecimento histórico importante foi a criação da Comissão Nacional de Alimentação (CNA), em 1945, na qual se organizaram os primeiros esforços de formulação de uma política nacional de alimentação. Exemplo de ação impulsionada pelo CNA foi a edição da primeira lei, em 1953, que tornou obrigatória a iodação do sal de cozinha nas áreas endêmicas de bócio. Contudo, o papel estratégico proposto ao CNA só veio a se concretizar com a criação do Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição (INAN), em 1972, como uma autarquia pública vinculada ao Ministério da Saúde. Apesar de sua vinculação setorial, assume um discurso de defesa da nutrição como elemento central para o desenvolvimento nacional e de proposição de ações intersetoriais para dar resposta às necessidades de alimentação da população brasileira, na linha das políticas compensatórias e de promoção do bem-estar social. Paradoxalmente, o INAN surge como um órgão central estratégico no seio do Governo durante a ditadura militar. O enfraquecimento do papel político e técnico do INAN levou a sua extinção em 1997 e parte de suas funções foi assumida por áreas técnicas do Ministério da Saúde. Essas experiências e construções político-sociais marcaram a forma como o tema da alimentação e nutrição se apresenta na agenda do SUS.

A PNAN, ainda que operacionalizada no âmbito do SUS, surge em 1999 como uma política pública que objetiva ações de enfrentamento da insegurança alimentar e nutricional da população brasileira. A primeira edição da PNAN foi pioneira ao adotar como princípio a realização do DHAA, dando resposta e consequência às recomendações políticas da I Conferência Nacional de Alimentação e Nutrição e da I Conferência Nacional de Segurança Alimentar. A PNAN amplia o conceito de SAN, antes tratado apenas como o abastecimento em quantidade apropriada, para a incorporação do acesso universal aos alimentos e da dimensão nutricional, relativa à composição, qualidade e aproveitamento biológico e aos riscos sanitários atribuíveis aos alimentos. A primeira edição da PNAN trazia como principais fundamentos a garantia da SAN e a intersetorialidade.

Ao longo da década seguinte à publicação da PNAN, um conjunto de marcos políticos e legais no campo da SAN foram aprovados, a exemplo da publicação da Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (LOSAN), em 2006, e a constituição do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN). Por outro lado, as mudanças no cenário epidemiológico, indicavam a necessidade de reorganização do sistema de saúde brasileiro para atender as novas demandas de saúde da população, marcadas pela emergência das condições crônicas. Desta forma, as inovações nos mecanismos de gestão e organização da atenção à saúde adotadas no SUS, com a estruturação das Redes de Atenção em Saúde (RAS), e as responsabilidades do setor saúde para promoção de SAN junto ao SISAN, nortearam o processo de revisão da PNAN, realizado entre os anos de 2010 e 2011.

Considerou-se que o SUS havia proporcionado importantes avanços na atenção à saúde da população brasileira, como a redução da mortalidade infantil, a expansão da atenção básica, a ampliação do acesso a ações e serviços que vão da imunização aos transplantes, passando pela vigilância e promoção à saúde. No entanto, desafios permaneciam no sentido da superação de lacunas assistenciais e revisão do modelo assistencial com vista à integralidade do cuidado em um cenário epidemiológico complexo, que combina condições agudas e crônicas, demandando a superação de um modelo de atenção à saúde fragmentado, hierarquizado e centrado em condições agudas. Assim, surgiu a necessidade de atualizar as diretrizes da PNAN de forma a orientar a organização e qualificação das ações de alimentação e nutrição no SUS e também de legitimá-la como interlocutora entre o SUS e o SISAN.

Se a publicação da PNAN, em 1999, foi um marco para a SAN no Brasil, por trazer temas como o DHAA e a intersetorialidade das ações de alimentação e nutrição, seu texto atualizado reforçou a atenção nutricional como um componente central na produção do cuidado em saúde. O conceito de atenção nutricional está ancorado no tripé: (1) vigilância alimentar e nutricional, (2) promoção da alimentação adequada e saudável e (3) prevenção e controle de agravos nutricionais.

Observa-se que a organização da atenção nutricional no SUS tem se deparado, de alguma forma, com desafios comuns da produção do cuidado em saúde, em especial no âmbito da atenção básica. Assim como outras áreas temáticas, a exemplo da atenção à saúde da criança ou do controle de hipertensão, a atenção nutricional tem evoluído gradativamente dos programas verticalizados para a perspectiva de cuidado integral. Ao longo de sua história no SUS, as ações de alimentação e nutrição foram fortemente marcadas por programas desenhados para dar respostas a um determinado problema de saúde de certo grupo populacional, como aqueles de prevenção e controle de deficiência de micronutrientes e o atrelamento da vigilância alimentar e nutricional aos de controle da desnutrição e de transferência de renda. A natureza vertical, muitas vezes paralela à dinâmica concretada do trabalho das equipes de saúde, é um dos fatores explicativos das baixas coberturas desses programas. Gomes e Pinheiro destacam que um dos sentidos da integralidade é um novo modo de organizar as práticas de cuidado nos serviços de saúde, o que exigiria “uma certa ‘horizontalização’ dos programas anteriormente verticais, desenhados pelo Ministério da Saúde, superando a fragmentação das atividades no interior das unidades de saúde”.

Um exemplo concreto na busca recente pela integralidade na agenda da Alimentação e Nutrição é a proposição de uma linha de cuidado para a prevenção e o controle do sobrepeso e obesidade na RAS das Pessoas com Doenças Crônicas (Portaria nº 424 GM/MS de 19 de março de 2013), um dos produtos assumidos pelo Plano de Ação Estratégica para enfrentamento das Doenças Crônicas não Transmissíveis, lançado pelo Ministério da Saúde em 2011. Essa linha de cuidado estabelece e organiza um conjunto de ações e serviços envolvendo diversos atores dos pontos de atenção da RAS. A proposição dessa linha de cuidado induziu processos de comunicação e aproximação dos diferentes pontos de atenção da rede de saúde nos Estados e Municípios. Apesar desses avanços, a publicação da Portaria nº 62 GM/MS, de 6 de janeiro de 2017, que altera a Portaria nº 424/2013, trouxe um retrocesso ao desvincular a habilitação hospitalar para a assistência de alta complexidade ao indivíduo com obesidade da obrigatoriedade de aprovação da linha de cuidado como um todo. Dessa forma, a indução da organização do cuidado integral em obesidade enfraqueceu-se, em especial na oferta de ações e serviços em outros pontos da RAS, para além da atenção cirúrgica hospitalar. O abandono do compromisso de organização da atenção nutricional na RAS para os indivíduos com sobrepeso e obesidade implica em retrocesso na construção de linhas de cuidado orientadas pela integralidade, o que poderia resultar em novas práticas em atenção nutricional.

Com a recente inflexão na organização da atenção nutricional, que em muito deve estar relacionada aos cortes dos gastos públicos em saúde, o que se observa atualmente é a focalização do debate sobre estratégias de prevenção e controle do sobrepeso e obesidade às medidas de controle da rotulagem nutricional no âmbito da agenda regulatória da Anvisa. Tal discussão é importante e tem sido bastante impulsionada pelos movimentos sociais de defesa da alimentação adequada e saudável. A prevenção da obesidade como um problema de saúde pública deve passar necessariamente pela regulação sanitária – aqui compreendida a partir de um conceito ampliado de risco sanitário em alimentos que vai muito além da inocuidade química, física ou microbiológica, perpassando por dimensões relacionadas ao controle da qualidade nutricional dos alimentos industrializados, da publicidade e políticas de rotulagem; incluindo, assim, práticas de comunicação e educação em saúde que estimulem a consciência sanitária dos consumidores e do conjunto de atores sociais do sistema alimentar. Outros países latino-americanos têm feito esforços neste sentido e alcançado resultados promissores, a exemplo da iniciativa de taxação de bebidas açucaradas no México e de rotulagem nutricional frontal com advertência de nutrientes críticos adotada no Chile.

Ao tratar da agenda de alimentação e nutrição no SUS, é importante reconhecer a existência de uma linha tênue que separa as ações intra e intersetoriais. Por exemplo, quando se toma a questão do financiamento, percebe-se que a mensuração do investimento em políticas públicas de alimentação e nutrição é de difícil apuração. Os motivos para essa dificuldade são vários e passam pela geração e gestão interfederativas dos recursos financeiros da saúde e pela natureza intersetorial da agenda de nutrição e SAN. Desde a publicação da primeira edição da PNAN, a União tem sido a principal financiadora das ações e programas específicos de alimentação e nutrição no SUS, o que se dá, em especial, por meio da compra de insumos, como suplementos de vitaminas e minerais, ou por repasse financeiro fundo a fundo para os estados e uma pequena parcela de municípios. Esse repasse entre entes federados estabelece incentivo de custeio para a estruturação e a implementação de ações de alimentação e nutrição, com base na PNAN, pelas Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde que apresentam muitas dificuldades na utilização dos mesmos. De todo modo, esse incentivo de custeio, apesar de muito limitado em seu valor financeiro, representa um grande avanço em relação aos tradicionais programas verticalizados de execução centralizada pré-SUS, sendo reconhecido pelos técnicos de Alimentação e Nutrição, nas secretarias dos estados e municípios, como importante para o fortalecimento da área no âmbito do SUS, conferindo maior visibilidade e contribuindo para a execução de parte das ações previstas nas diretrizes da PNAN. Destaca-se que a alocação de recursos na forma de “caixinha” dentro do financiamento da União, tem sido veementemente criticada por estados e municípios. É necessário ter em mente que as ações de alimentação e nutrição no SUS atravessam e compõem a assistência em saúde nos diferentes pontos da RAS, assim como fazem parte das ações de vigilância epidemiológica e sanitária e de educação permanente, podendo ser por elas financiadas se uma vez incorporadas como elemento constituinte do planejamento integrado em saúde. Desta forma, é imperativo pensar que a questão de alimentação e nutrição tem que ser contabilizada, em primeiro lugar, como um condicionante e determinante da saúde, não como uma agenda programática especifica, e que não depende exclusivamente da saúde.

A transição nutricional moveu a agenda de alimentação e nutrição no SUS?

Ao longo do percurso de 30 anos de construção do SUS, a sociedade brasileira experimentou grandes transformações sociais que resultaram em mudanças no seu padrão de consumo alimentar, nutrição e saúde. No sentido positivo, destacam-se os esforços das políticas econômicas e sociais em relação ao combate à pobreza e de aumento da renda do brasileiro, que conjuntamente à melhoria do acesso a serviços tanto de saúde como de educação, influenciaram a maneira como os brasileiros vivem, adoecem e morrem, impactando assim positivamente a saúde no Brasil.

A transição nutricional está relacionada com uma complexa rede de mudanças nos padrões demográfico, socioeconômico, ambiental, agrícola e de saúde, envolvendo fatores como urbanização, crescimento econômico, distribuição de renda, incorporação de tecnologias e mudanças culturais. Os sistemas alimentares, incluindo os processos de produção, transformação, distribuição, marketing e consumo de alimentos, estão fortemente relacionados à transição nutricional e precisam ser reposicionados para não apenas ofertar alimentos, mas sim promover dietas mais saudáveis e sustentáveis para todos.

A superação da desnutrição infantil como fenômeno de saúde pública é emblemático na história do SUS e das políticas sociais brasileiras pós constituição de 1988. Os programas públicos de controle da desnutrição no Brasil avançaram de modelos paliativo/assistencialistas para o enfrentamento de seus determinantes sociais, bem como para a qualificação da atenção em saúde da criança, medidas a partir das quais surgiram os resultados positivos. Os principais fatores apontados como responsáveis são: aumento da escolaridade materna; aumento do poder aquisitivo das famílias; melhora no acesso a serviços públicos essenciais e melhora nas condições de saneamento. No período observado de 1996-2006, a queda foi mais fortemente atribuída ao aumento do poder aquisitivo das famílias, sobretudo a partir de 2003 com o aumento da cobertura dos programas de transferência de renda, em associação à forte expansão do acesso aos serviços públicos de educação básica e de atenção primária em saúde. A análise da evolução do estado nutricional infantil nas últimas décadas evidencia uma clara tendência de redução das enormes desigualdades sociais na distribuição da desnutrição na infância.

O modelo de transferência condicionada de renda representou uma mudança de paradigma na intervenção governamental no campo de alimentação e nutrição. A primeira iniciativa foi com o Programa Bolsa Alimentação (PBA), em 2001, substituído pelo Programa Bolsa Família (PBF), em 2003. Os impactos do PBF nas condições de vida e saúde das famílias beneficiárias envolvem: (1) melhor acesso à atenção básica em saúde e a utilização dos serviços relacionados e (2) redução do baixo peso ao nascer, da desnutrição e da mortalidade infantil. Já no sentido crítico da transição nutricional brasileira, as conquistas significativas em relação ao declínio da desnutrição foram acompanhadas pelo crescimento de outros problemas nutricionais, como o aumento progressivo e expressivo do sobrepeso e da obesidade e de doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) relacionadas à alimentação e ao excesso de peso.

Os hábitos e as práticas alimentares têm se tornado importante determinantes das DCNT no país, incitando a valorização da educação alimentar e nutricional como uma estratégia a ser valorizada nas políticas públicas de saúde e segurança alimentar e nutricional. Guias alimentares têm sido publicados pelo Ministério da Saúde com o objetivo de apresentar diretrizes oficiais para a promoção da alimentação adequada e saudável.

Desta forma, o processo de transição nutricional no Brasil trouxe consigo o desafio de atualização da agenda de alimentação e nutrição no SUS. Percebe-se que a transição nutricional aproximou a agenda da alimentação e nutrição aos serviços de saúde, facilitando o seu reconhecimento como parte de uma atenção integral à saúde. Por outro lado, a compreensão dos determinantes sociais em saúde, que influenciam sobremaneira as oportunidades e os modos como os brasileiros se alimentam e os riscos relacionados ao estado nutricional de indivíduos e coletividades, aponta para a necessidade de respostas para além do setor saúde.

O que há para além do SUS?

Em um passeio pela história brasileira das políticas sociais que buscaram nexos entre produção, abastecimento, consumo de alimentos e nutrição, percebe-se que até o final do século passado o setor saúde foi o principal protagonista na proposição de respostas aos problemas da insegurança alimentar e nutricional da população. Talvez a explicação para esse fato seja porque é nos serviços de saúde que recaem os problemas decorrentes da fome, expressa pela desnutrição, e de um sistema alimentar não promotor da saúde que gera doenças relacionadas às práticas alimentares inadequadas, tal como a obesidade.

No entanto, a garantia da SAN exige uma conjunção de politicas públicas sociais integradas e complementares. Em uma linha do tempo pós SUS, a primeira tentativa de elevar o debate da SAN para uma arena política intersetorial ocorreu com a instituição do I Conselho Nacional de Segurança Alimentar (CONSEA), em 1993. Mas pelo caráter transitório do governo do presidente Itamar Franco, e a ainda frágil inserção do tema da SAN na agenda política brasileira, o CONSEA foi extinto em 1994, um ano após sua proposição. Esse esforço de articulação intersetorial foi retomado a partir de 2003, com a recriação do CONSEA, a priorização de governo na agenda da SAN, a institucionalização da Política Nacional de SAN e a implementação, de forma articulada, de políticas de proteção social e fomento a produção agrícola de base familiar. Tais fatores são reconhecidos como responsáveis pelos avanços no combate à fome e à pobreza no Brasil. Observou-se, assim, o rompimento de ações pontuais e fragmentadas em direção a um novo paradigma na construção de políticas públicas em SAN. Neste espectro, estão os avanços no Programa Nacional de Alimentação Escolar e sua interface com os programas de compras públicas de alimentos, dentre outros exemplos.

Neste mesmo sentido, vale apontar as diretrizes da V Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, que estabeleceu como lema "Comida de verdade no campo e na cidade: por direitos e soberania alimentar", destacando as dimensões socioculturais da alimentação e a valorização de um sistema alimentar justo e sustentável, tanto do ponto de vista social como ambiental, onde sejam valorizados e protegidos a agrobiodiversidade e os padrões alimentares tradicionais, com o respeito e o resgate das identidades, memórias e culturas alimentares próprias da população brasileira, em sintonia com as diretrizes do Guia Alimentar para a População Brasileira, publicado em 2014, que é um instrumento de educação em saúde proposto no âmbito do SUS.

Alimentação e Nutrição no SUS: uma agenda a devir?

A área de alimentação e nutrição teve uma notável trajetória no sentido do maior diálogo e apropriação pelo SUS. No entanto, os avanços brasileiros na redução da fome e desnutrição e, por outro lado, a transição nutricional marcada pelas mudanças nos padrões de consumo alimentar, colocam novos e complexos desafios ao sistema. A agenda presente e futura da alimentação saudável deve incorporar a dimensão da sustentabilidade, dialogando com o que estabelece a agenda 2030. Destaca-se que a alimentação está relacionada a praticamente todos os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, que dependem de transformações no sistema alimentar para serem atingidos. As pautas prioritárias incluem:

(1) Ampliação do acesso e da qualidade da atenção em saúde na perspectiva da integralidade do cuidado e que considerem a apreensão ampliada das reais necessidades de saúde e nutrição das pessoas;

(2) Promoção de transformações no sistema alimentar para práticas alimentares saudáveis e sustentáveis;

(3) Promoção de ações de educação e também de regulação e controle de alimentos (tais como a regulação da publicidade e da rotulagem de alimentos e o controle de níveis críticos de nutrientes como o sódio em alimentos industrializados);

(4) Consolidação de modelos de governança intersetoriais e participativos voltados à transformação do sistema alimentar e à promoção da saúde e da SAN;

(5) Avanço na integração de políticas sociais, chegando a públicos específicos com necessidades diferenciadas; e, por fim...

(6) A busca por políticas de garantia de direitos e acesso à alimentação saudável e sustentável em territórios vulneráveis, como os desertos alimentares.

Contudo, este processo desafiador vem sendo interrompido. O Brasil se depara com uma encruzilhada na construção da rede de proteção social que, até então, sustentou as conquistas obtidas na agenda de alimentação e nutrição. Medidas como a Emenda Constitucional 95, que estabelece um teto de gastos com impactos diretos no SUS, somados a cortes em gastos sociais em educação, desenvolvimento social e agrário e reformas que impactam a renda da população, como a reforma trabalhista e previdenciária, colocam em risco os recentes avanços em Saúde, Nutrição e SAN. É provável que passemos a nos deparar, no próximo período, com o acirramento da dupla carga da má nutrição: a fome e a desnutrição, agravada pelo sobrepeso e obesidade que decorre de um sistema alimentar baseado no ciclo de produção do agronegócio e dos alimentos ultraprocessados. Seria o retorno de problemas históricos do século passado, agravados pelos novos problemas do século XXI. Consolidado tal cenário pessimista, como garantir que o SUS continue construindo sua capacidade de acolher as complexas necessidades nutricionais da população brasileira?

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