Josué de Castro e o pensamento social brasileiro (Parte 2): Sociologia comprometida
- Por ONutricional
- 11 de jan. de 2018
- 6 min de leitura

Por Mercês de Fátima dos Santos Silva e Everardo Duarte Nunes
react-text: 6265 Reproduzido da /react-text Revista Ciência e Saúde Coletiva react-text: 6268 (DOI: 10.1590/1413-812320172211.35002016)
Josué de Castro argumentava que a naturalização da desigualdade não foi operada apenas pela elite política, mas também pela elite intelectual brasileira, que de forma disfarçada ou escancaradamente optava por aderir e justificar este ato. Castro constatava que parte da nossa sociedade, mais numerosa e faminta, estava privada do direito primário: o de se alimentar. Para ele, a miopia da intelectualidade ou os óculos da ideologia dominante com seus interesses econômicos trabalhavam para esconder o fenômeno da fome, reprodutora da pobreza.
Assim, ao abrir as cortinas do nosso país, para apontar que somos um país famélico, Castro não operou apenas no plano das ideias passageiras com afirmações frágeis de que é possível reverter a situação de miserabilidade da nossa nação por um decreto do Estado, pelo contrário, analisou que a fome é um problema com várias ramificações aparentemente desarticuladas entre si, mas que estão estritamente vinculadas e, no nosso caso, complexificam-se dada a extensão territorial, as condições do homem tropical, a diversidade cultural do povo e a cultura política da elite brasileira. Sendo assim, os problemas sociais, tendo a fome como eixo central, não poderiam ser baseados numa relação masoquista entre senhor de escravo (bem alimentado) e os escravos (alimentado), conforme relatado por Freyre.
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Para Castro, o processo de colonização e escravidão brasileira foi violento, como qualquer outra forma de escravidão, trazendo consequências socioambientais e culturais para a alimentação e nutrição nacional, sendo o fenômeno da fome observado tanto entre os senhores quanto nos escravos. Entre os escravos, a fome operou consequências devastadoras do ponto de vista moral, cultural e político, por serem claramente marginalizados, humilhados e privados de direitos sociais básicos.
Tal como Celso Furtado e outros autores que recepcionaram a obra de Mannheim no Brasil, Castro enfatiza em seus textos que a reflexão teórica, o pensamento produzido pelos intelectuais de uma sociedade, tem a incumbência de fazer com que a sociedade seja revelada em suas nuanças fundamentais, em seus aspectos formadores em sua constituição. Mais que isso, caberia ao intelectual um esforço de ação transformadora através de uma atividade intelectual que desvende as relações sociais e aponte caminhos para a ação prática, tendo em vista que a obra intelectual tem como função a intervenção social.
Entretanto, esta intervenção intelectual terá sempre um compromisso com o rigor científico, mas não com o "fanatismo do cientificismo estreito, detentor de verdades parciais e sempre temeroso de toda aventura da inteligência que possa alterar a disposição clássica" de ciência. Mas um rigor científico que traduza especulações

organizadas sobre a realidade, a partir de métodos produtivos que possam gerar ações propositivas sobre o real e não quadros pitorescos da realidade, fato que lhe chamou atenção sobre a formação da sociologia no Brasil nos anos de 1930 e que o levou a denominar de "Sociologia Pitoresca". Neste texto, "Sociologia Pitoresca", o autor critica certas formas de estudos sociológicos que para ele produziram uma ditadura pitoresca dentro do quadro ecológico da sociologia brasileira, pintando "a paisagem cultural como exótica para "inglês ver". Tais críticas revelaram as fortes divergências existentes com Freyre, especialmente, em relação às condições de vida, habitação e alimentação da sociedade brasileira. Embora Castro admita que Freyre tenha abordado com certa inteligência tais temáticas, para ele, porém, o autor de Casa Grande & Senzala havia se utilizado mais de aspectos pitorescos do que propriamente de aspectos teórico-metodológicos.
Bem verdade que as trocas de acusações foram recíprocas e iniciaram-se em 1932, com a tese de Livre-docência "O problema fisiológico da alimentação no Brasil" defendida por Castro pela Faculdade de Medicina do Recife e publicada em 1933. As ideias apresentadas neste estudo contestadas por Gilberto Freyre em "Casa Grande & Senzala", evidentemente por questões de delimitação e competência de saberes. Castro questiona-se sobre como pode Freyre, que cita autores consagrados na área da Nutrição, não conhecer alguns conceitos básicos de Química e de Biologia que lhe permitiriam penetrar minimamente nos assuntos especializados de alimentação, chegando até a diferenciar proteína de albuminoides como sendo duas coisas diferentes, quando são a mesma coisa. Além disso, Castro interroga-se como se pode afirmar que os negros são mais bem alimentados do Brasil.
Tratando da alimentação dos escravos ele [Freyre] diz: "sua abundância em milho, toucinho e feijão recomenda-a como regime apropriado ao duro esforço exigido do escravo agrícola". Ora esse regime que o sociólogo julga racional é capaz de matar por deficiência até um inativo quanto mais um escravo forçado a trabalhos exaustivos. Onde, neste regime se encontram albuminas de alto valor biológico contendo ácidos aminados indispensáveis ao equilíbrio nutritivo?" (Diário da Manhã, 3 de fevereiro de 1934). Para Castro, Freyre faz uma abordagem inteligente em Casa Grande & Senzala, na medida em que teria mostrado a importância da influência negra na formação socioeconômica, sobretudo, no que se refere a diversidade alimentar e seus cultivos, despertando para intrínseca relação entre alimentação e sociedade, além de despertar interesse pelo problema do negro. Cabe notar que tanto Castro e Freyre, ao utilizarem-se do enfoque cultural, socioeconômico e geográfico, chegam a pontos comuns, como, por exemplo, que o nosso padrão alimentar é deficiente e instável. Entretanto, Castro atribuiu esta conclusão também ao fato de que a Saúde Pública teria provocado uma mudança nos estudos sociológicos, ao dar valor aos processos biológicos, às condições gerais de vida e de higiene como fatores socioantropológicos.
Já se vai tornando frase feita entre os modernos sociólogos de que o homem é fraco no Brasil e o Brasil pobre no mundo por falta de alimentação adequada do seu povo e de outros requisitos de higiene coletiva. Com todo o exagero que contenha esta afirmativa tomada assim rigidamente sem uma certa prudência científica, ela é bem mais salutar ao país do que a afirmativa retórica dos antigos discursos políticos de que – O Brasil é um país feliz onde ninguém morre de fome.
Entretanto, o grande erro de Freyre, o que demonstrava a fragilidade da sua interpretação, estava em concluir que os mais bem alimentados do padrão alimentar brasileiro se encontravam em duas classes antagônicas: o senhor de engenho e os escravos. Isto significaria que as demais camadas sociais dentro do regime econômico, os homens livres, constituídos por mestiços e caboclos, apresentavam maior déficit no consumo de alimentos. Para Castro, relacionada aos interesses econômicos, subjazia na ação do senhor de engenho a necessidade de abastecer o escravo de maior teor energético. Não havia preocupação com o fornecimento dos alimentos protetores do organismo, isso fazia com que as senzalas fossem espaços de afecções, avitaminoses, tuberculose e tantos outros males. Além disso, a monocultura açucareira e o latifúndio foram as grandes causas da problemática urbana, aliás, de todo o país.
O nosso autor ressalta que esse descompromisso assumido por Freyre continuou em Sobrados e Mucambos, ao descrever a importância dos mocambos como valor nacional, esquecendo que são habitações construídas em locais inapropriados para a saúde humana e fruto do êxodo rural causado pelo agravamento da fome da população açucareira e do Sertão Nordestino, habitadas em sua maioria por negros e mestiços. Castro considerava os mocambos como verdadeira senzala remanescente, que revelava a produção e a reprodução das desigualdades sociais, para além da poesia das manifestações socioculturais realizadas pelos negros e mestiços, seus principais habitantes. Para Castro, o emprego do método sociológico, sem conhecimento integral do problema mediante pesquisa sistemática, gerava distorções que nada contribuiriam para solução dos nossos problemas, pelo contrário, mostrava-se o desserviço intelectual descomprometido com a nação. Para ele era necessário a criação de uma Sociologia Comprometida.

Cabe enfatizar que, as aproximações e o afastamento da obra de Castro com Gilberto Freyre revelam uma das principais características do legado intelectual de nosso autor, o diálogo intelectual com diversas tendências e atores "sem uma filiação que o limitasse a determinada perspectiva", desenvolvendo um legado marcado por convergência, divergência, renovações e singularidades em relação ao pensamento emergente em sua época, com intuito de revelar as práticas de uma ciência engajada. Ao eleger a temática da fome como objeto de estudo, Castro revelou sua perspectiva de ciência engajada e o papel dos intelectuais, que seria não construir verdades absolutas universais, mas possibilidades de elaborações e planejamentos para a construção de uma sociedade equitativamente mais justa.

Claramente, podemos perceber na obra de Castro, no que diz respeito ao debate entre alimentação, saúde e sociedade, três momentos distintos e dialógicos entre si, que se comunicam e avançam na direção da compreensão da produção da pobreza no Brasil. O primeiro momento corresponde à tese "Mal de fome e não de raça" (1930-1940); O segundo momento de (1940- 1946) consolidação da ciência da nutrição e o último (1946-1960), fase em que o autor consolida as bases do seu pensamento em relação à desigualdade social à brasileira.
Continua...
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