Reflexões sobre (des)nutrição na pós-modernidade
- Por ONutricional
- 8 de nov. de 2017
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Do artigo: "A (des)nutrição e o novo padrão epidemiológico em um contexto de desenvolvimento e desigualdades", por Nathália Paula de Souza, Pedro Israel Cabral de Lira, Annick Fontbonne, Fernanda Cristina de Lima Pinto e Eduarda Ângela Pessoa Cesse*, publicado na revista /react-text Ciência & Saúde Coletiva react-text: 1856 : /react-text

Para além dos determinantes sociais da saúde, os princípios de uma sociedade capitalista podem ter relação direta com o processo de adoecimento e, por isso, a discussão da macro política deve estar intrinsecamente ligada às mudanças nutricionais e epidemiológicas (Vistas em "(Des)nutrição: aspectos conceituais, históricos e antropológicos" e em "Prevalência, distribuição e tendência secular da (des)nutrição em um contexto de desenvolvimento e desigualdades"). Josué de Castro, na metade do século XX, já levantou a tese de que o subdesenvolvimento era um subproduto do desenvolvimento e na modernidade o processo de exploração parece ser camuflado nos diversos prazeres vendidos/proporcionados.
Nessa perspectiva, Lefevre e Lefevre elaboram um modelo triangular para explicar o processo saúde e doença baseado na lógica mercadológica, e apresentam como protagonistas o indivíduo, o sistema produtivo e o corpo técnico (profissionais de saúde). Para os indivíduos a saúde é vista como uma “sensação”, portanto é sentida; para o sistema produtivo como uma “mercadoria”, neste caso é vendida; e do ponto de vista técnico como um tipo de “poder ou autoridade”, deste modo é o exercício de proporcionar saúde. Dessa forma, todos os atores deveriam exercer papel de vigilantes entre si para equilibrar as forças e garantir que todos os âmbitos fossem contemplados dentro de seus limites, em prol da saúde. Porém, no contexto atual, a alimentação e a nutrição tornam-se mercadoria e entram na agenda de interesses contemporâneos, modificando desde os meios de produção até a forma como se compra e se prepara os alimentos. Nessa lógica de consumo, a nutrientificação dos alimentos, a quimificação dos remédios e os estilos de vida saudáveis servem ao sistema produtivo, muitas vezes articulado com o poder técnico dos profissionais de saúde, e exercem forte influência sobre o indivíduo.
A título de ilustração, a medicina da beleza é uma das que mais cresce no mundo, e o componente dietético está largamente disseminado nos diversos mecanismos de comunicação, sendo também um dos fatores relacionados às novas formas de apresentação da desnutrição como transtornos alimentares (anorexia, bulimia), intolerâncias e alergias alimentares, cânceres e outras. O corpo é mais do que nunca representado como expressão perfeita da evolução: o corpo do homem é a própria imagem de sua cultura.
Ademais, vários problemas de saúde são subprodutos de demandas capitalistas locais como a utilização indiscriminada de defensivos agrícolas nas grandes produções voltadas para o agronegócio levando à contaminação de alimentos e até mesmo do leite materno; marketing e propaganda infantil, contribuindo para a obesidade e desnutrição nessa fase da vida; ultraprocessamento de alimentos para atender demandas de tempo e espaço, resultando na modificação da composição nutricional e adição de estruturas artificiais desconhecidas pelo metabolismo humano e capazes de gerar graves problemas metabólicos.
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Os impactos ambientais e coletivos decorrentes dessas demandas permanecem pouco divulgados ou ainda no anonimato para garantir os interesses do mercado. Em nível nacional e internacional, podemos identificar tímidas iniciativas que vão de encontro à lógica de mercado. A cidade de Berkeley, na Califórnia, foi a primeira nos Estados Unidos a aprovar a aplicação de imposto de aproximadamente 10% para as bebidas açucaradas. No Reino Unido a medida foi mais recente (2016) e, no Brasil, encontra-se em tramitação um Projeto de Lei (1.755/2007) para proibição da venda de refrigerantes em escolas de educação básica. Essas medidas também são criticadas, e no discurso dos que se sentem vítimas destas, esse processo penaliza o consumidor e suprime sua autonomia.
O Chile e o Equador adotaram um sistema de rotulagem cujas informações e alertas gráficos são colocados na frente dos pacotes para chamar atenção dos consumidores quanto à qualidade do alimento. Outras iniciativas, como a regulação do marketing e propaganda de alimentos, continuam sendo um desafio tanto em países desenvolvidos como em desenvolvimento. No Brasil, a Norma Brasileira de Comercialização de Alimentos para Lactentes e Crianças de Primeira Infância, Bicos, Chupetas e Mamadeiras, que representa um conjunto de normas para regular a promoção comercial e a rotulagem de alimentos e produtos destinados a recém-nascidos e crianças de até três anos de idade, foi regulamentada quase 10 anos depois de sua criação, por meio do Decreto nº 8.552, de 3 de novembro de 2015.
O Brasil adotou também medidas de proporções mais amplas como incentivo à produção local e familiar com garantia de compra, a exemplo do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e a inclusão da agricultura familiar no Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). Assim é possível garantir renda para famílias, possibilitar a permanência destas no seu território de origem em vez de migrarem para os grandes centros urbanos, incentivar uma produção sustentável, resgatar a cultura local e os padrões alimentares tradicionais, além de incluir alimentos saudáveis nas escolas. Nessa perspectiva, por meio da Cooperação Sul-Sul (CSS), foi firmada parceria com Moçambique com o objetivo de promover transferência de conhecimentos e oferecer suporte técnico para viabilizar a elaboração e a implementação do “Programa Nacional de Alimentação Escolar de Moçambique”, pautada na experiência brasileira e considerando a realidade e a cultura local. Alguns resultados já podem ser observados como o aumento da adesão e frequência escolar em Changara e a presença de hortas em 80% das escolas com produção de alimentos como milho, couve, tomates, cebolas, em Cahora-Bassa.

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O enfrentamento das doenças agudas e crônicas perpassa o desafio de se impor aos interesses econômicos, ao poder de fortes indústrias como a alimentícia, da beleza e farmacêutica, além de firmar parcerias solidárias. A Segunda Conferência Internacional sobre Nutrição (ICN2) trouxe um conjunto de ações políticas que os governos se comprometeram em implementar para enfrentar a má nutrição em todas as suas formas (sobrepeso e obesidade, retardo do crescimento, deficiências de micronutrientes). Entre as ações propostas destacam-se o fortalecimento de locais para produção e processamento de alimentos, especialmente por pequenos agricultores; incentivo à redução de gordura saturada, açúcares e sal de alimentos e bebidas; formação de recursos humanos; regulamentação do marketing e propaganda de alimentos, especialmente quanto à comercialização de substitutos do leite materno; criação de ambientes propícios para a promoção da atividade física desde as fases iniciais da vida, e outros.
São muitos os interesses que permeiam as questões relacionadas à saúde e nutrição na sociedade contemporânea, mas deve-se destacar o respeito às escolhas individuais, em prol da autonomia dos sujeitos. No entanto, isso se entende empoderando o indivíduo para corretas escolhas e, por isso, o Estado deve atuar em prol da proteção da coletividade, por meio de políticas públicas com ênfase na educação, promoção da saúde e esforços regulatórios, para que os direitos coletivos não sejam cerceados em benefício de uma minoria e o individuo não seja constantemente culpado por não conseguir enquadrar-se em padrões comportamentais.
*Sobre os autores:
Nathália Paula de Souza react-text: 697 e /react-text Eduarda Ângela Pessoa Cesse react-text: 699 , Departamento de Saúde Coletiva, Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães, Fiocruz. Av. Professor Moraes Rego s/n, Cidade Universitária. 50740-465 Recife PE Brasil. /react-text
Pedro Israel Cabral de Lira react-text: 704 e /react-text Fernanda Cristina de Lima Pinto react-text: 706 , Departamento de Nutrição, Centro de Ciências da Saúde, Universidade Federal de Pernambuco. Recife PE Brasil. /react-text
Annick Fontbonne react-text: 711 , UMR 204 Nutripass, IRD, SupAgro, Université Montpellier. Montpellier França. /react-text
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