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Prevalência, distribuição e tendência secular da (des)nutrição em um contexto de desenvolvimento e d

  • Por ONutricional
  • 1 de nov. de 2017
  • 8 min de leitura

Do artigo: "A (des)nutrição e o novo padrão epidemiológico em um contexto de desenvolvimento e desigualdades", por Nathália Paula de Souza, Pedro Israel Cabral de Lira, Annick Fontbonne, Fernanda Cristina de Lima Pinto e Eduarda Ângela Pessoa Cesse*, publicado na revista Ciência & Saúde Coletiva:

"Estaríamos vivenciando, há mais de 50 anos, “uma transição alimentar/nutricional ou uma mutação antropológica?”. Estaríamos diante de uma “metamorfose epidemiológica?”. Assim Batista Filho e Vidal Batista fazem trocadilhos com as palavras e nos levam a refletir sobre qual o modelo de (des)nutrição vigente no início do século XXI em meio às transições demográficas e epidemiológicas.

Na década de 1940, aproximadamente 69% dos brasileiros residiam na zona rural e a maior parte da população economicamente ativa trabalhava na agricultura, pecuária, silvicultura, atividades domésticas e escolares (73,6%). Em 2012, 84,8% da população se encontrava concentrada nas áreas urbanas do país, com diferenças importantes dentro do território nacional. Essas mudanças ao longo do tempo transformaram as estruturas geradoras de renda e geraram impacto no estilo de vida e no estado nutricional.

O número médio de filhos por mulher em idade reprodutiva passou de 6,3 para 1,8, em 1940 e 2012, respectivamente. Por outro lado, a taxa de mortalidade infantil no primeiro ano de vida reduziu de 124 óbitos para cada mil nascidos vivos, em 1960, para 16 em 2010, e alcançou o objetivo do milênio antes do tempo previsto (2015). Ao mesmo tempo, a expectativa de vida aumentou de 42,7 anos, na década de 40, para 74,5 anos, em 2012 e segundo projeções alcançará 81,29 anos em 2050, valores próximos aos da China e Japão.

As mudanças citadas manifestam, em algum momento histórico, o cruzamento e a inversão de curvas como a de mortalidade e a de natalidade, e a situação de residência em área rural e urbana. A melhora nas condições de vida e saúde, saneamento básico, escolaridade, moradia, acesso a serviços, avanço da tecnologia desde os antibióticos, anticoncepcionais até a era da genética, além de mudanças socioculturais como a inserção da mulher no mercado de trabalho, a urbanização e a convivência com outras doenças, são alguns aspectos que contribuíram para o cenário atual.

Todas essas mudanças descritas aconteceram tardiamente no Brasil em relação à Europa, por exemplo, porém de forma rápida e intensa. Apesar de características semelhantes, o contexto nacional de iniquidades permanece como empecilho para a garantia de direitos humanos básicos, como a alimentação. Para caracterizar melhor essas diferenças ao longo do tempo segue a descrição de aspectos da alimentação e nutrição em três períodos históricos: antes de 1970, de 1970 a 1990, e após 1990.

Apesar do gasto energético aparentemente superior na transição do século XIX para o XX, os registros de ingestão calórica variavam de 1.600 a 1.700 calorias ou menos. A desnutrição estava presente em todas as regiões do país, embora com causas e manifestações diversas, e que Josué de Castro distribuiu como três “áreas de fome” e duas “áreas de subnutrição”. Se comparássemos a atual divisão do país seriam duas áreas de fome, regiões Norte e Nordeste, e três de subnutrição, Sul, Sudeste e Centro-Oeste.

Nesse período, foram encontradas diversas carências nutricionais como deficiência de sódio, anemia por deficiência de ferro, bócio (deficiência de iodo), beribéri (deficiência de vitamina B1 na Amazônia) e déficits proteico e calórico, que se manifestavam nas formas mais graves da desnutrição (marasmo e kwashiorkor), além das endemias como as verminoses, esquistossomose, doença de Chagas e malária (na Amazônia). Entretanto, o Sul apresentava o padrão dietético mais equilibrado e tinha no seu processo de colonização, com caráter de povoamento e desenvolvimento da região, uma importante justificativa.

Apesar de uma realidade epidemiológica diferente do contexto atual, Josué de Castro já fazia referência a diferenças no perfil alimentar vinculado a classes sociais, da casa-grande e da senzala, por exemplo. Além de também relatar a presença de escassez e excessos, uma vez que enquanto alguns tinham fome pela ausência do alimento, outros se superalimentavam, caracterizando ambas as situações como indutoras da má nutrição.

No período que segue, incentivou-se a produção agrícola em massa com a justificativa de superação da fome, indiretamente verificada por meio do déficit de peso. A prevalência de baixo peso no Nordeste (15,5%) era o dobro daquela encontrada no Sul (7,2%), mas já era possível caracterizar o excesso de peso como um problema de saúde pública, tendo em vista o acometimento de 21,9% da população adulta do país. Em mulheres adultas, o déficit ponderal foi corrigido entre 1975 e 1989, com exceção do Nordeste rural (12,2%), mas permaneceu em declínio na década posterior.

Ao comparar pesquisas nacionais de 1970, 1980 e 1990, também se observou o declínio da desnutrição com redução de aproximadamente 72% do déficit de estatura em crianças. As maiores variações aconteceram na zona urbana em relação à rural, sendo que as diferenças do campo em relação a cidade aumentaram ao longo dos três períodos em cerca de 50% (40,5% e 26,6%), 80% (22,7% e 12,5%) e 145% (18,9% e 7,7%), respectivamente, o que bem caracteriza a desnutrição como produto da desigualdade.

Por outro lado, o excesso de peso entre meninos e meninas de 5 a 9 anos aumentou de 13,8% para 19,1% e de 10,4% para 14,3%, respectivamente. Em mulheres adultas, a evolução foi de 22,2% (1974/1975) para 39,1% (1989) e 47,0% (1995/1996), o que totalizou um aumento de 112% no sobrepeso (IMC ≥ 25,0 kg/m^2).

A mortalidade por doenças crônicas não-transmissíveis aumentou em mais de três vezes entre as décadas de 1930 e 1990. Por outro lado, a anemia permaneceu presente e estudos realizados em São Paulo e Paraíba destacaram um incremento na prevalência de 116% no primeiro estado, entre 1974/1975 e 1995 (22% para 46,9%), e de 88% no segundo, entre 1982 e 1992 (19,3% para 36,4%). Por outro lado, reduziu- se o bócio endêmico, após aproximadamente três décadas de entraves científicos, políticos e econômicos. A iodação do sal de cozinha foi implementada em todo território nacional apenas em 1974, quando a agenda de enfrentamento do problema passou a ser internacional.

Além das desigualdades regionais, também se percebe a perpetuação de injustiças sociais em grupos vulneráveis como indígenas, quilombolas, mulheres e crianças, mesmo em regiões historicamente mais desenvolvidas social e economicamente, como a região Sul. Em estudo com crianças índias Terenas (Mato Grosso do Sul-Brasil), em 1995, verificou-se 15% de déficit de estatura e prevalência de anemia de 86,1% entre 6 e 24 meses, ao mesmo tempo que se registrou aumento significante do peso em relação à idade e à altura.

No padrão dietético associado a essas mudanças nutricionais, observou-se aumento no consumo de refrigerantes, biscoitos, embutidos e refeições industrializadas em 425%, 218%, 173% e 77% respectivamente. Por outro lado, reduziu- se o consumo de ovos, gordura animal, peixes, raízes e tubérculos em 83%, 63%, 38% e 33%, respectivamente. O consumo médio de sal no Brasil (12g/dia) alcançou o dobro da recomendação da Organização Mundial de Saúde (OMS) e se aproxima do consumo per capita encontrado nos países considerados mais desenvolvidos.

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Epidemias silenciosas:

"No período entre 2006 e 2016, a população de obesos no país aumentou em quase dez milhões, e o de diabéticos, em quase três milhões"

A maior disponibilidade de variedades e quantidade de alimentos, a implantação de políticas assistenciais que melhoraram o acesso e a distribuição destes, além da expansão do saneamento, da rede básica de saúde, melhoria da escolaridade materna e renda familiar, foram alguns avanços que permitiram o alcance de algumas metas do milênio como a erradicação da fome e a superação do déficit de altura, que atingiram, respectivamente, em 2006, 1,7% e 6,7% das crianças. Ao mesmo tempo o país passou a ocupar a 77ª posição no ranking da OMS em relação à obesidade.

No inicio do século XXI, pesquisas reafirmam as intensas desigualdades que se manifestam de forma injusta em grupos vulneráveis, os mesmos que permanecem sendo acometidos por desnutrição crônica (26% das crianças indígenas, 16% dos quilombolas, 15% das famílias beneficiárias de programas de transferência de renda, 5% dos residentes na região norte), anemia (20,9% das crianças e 29,4% mulheres em idade fértil) e hipovitaminose A (17,4% das crianças e 12,3% mulheres em idade fértil).

A contínua convivência com a desnutrição não interferiu no crescimento gradual e rápido da obesidade no país. Entre 2014 e 2015, a prevalência de excesso de peso entre adolescentes foi de 23,7% nos meninos e 23,8% nas meninas, enquanto que 52,5% dos adultos brasileiros estavam acima do peso e 17,9% obesos. Alguns aspectos positivos registrados nos últimos anos foram o aumento da prática de atividade física em 18% (2009/2014) e redução de 19,3% no número de pessoas que assistiam televisão três ou mais horas por dia (2006/2014), além da tendência à estabilização da obesidade nos últimos três anos (2012-2014).

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Vigitel: Dados recentes sobre o comportamento alimentar do brasileiro e seu impacto sobre o excesso de peso:

"Pesquisa divulgada pelo Ministério da Saúde revela o crescimento da obesidade no Brasil, mesmo entre pessoas mais jovens..."

Em meio à superação dos agravos decorrentes da fome, desnutrição e pobreza extrema, o caso do beribéri no Maranhão, entre 2006 e 2008, deixou a comunidade científica perplexa por se tratar de uma deficiência primária da Vitamina B1 (tiamina), em pleno século da tecnologia. Os principais determinantes foram o uso abusivo de álcool e a atividade física laboral pesada, além da possível exposição a agrotóxicos. Todos esses aspectos apresentaram relação com as mudanças sociais que aconteceram ao longo das últimas décadas na região com predomínio da agricultura exploratória e pouca produção de alimentos básicos, agropecuária extensiva, além do intenso desmatamento para atender as demandas de madeireiras e mineradoras, o que resultou em alterações nas relações de trabalho, na economia local e na cultura, acentuando as iniquidades.

Tais paradoxos são verificados também em países que historicamente têm superado o problema da fome, desnutrição e pobreza extrema. Segundo estimativas da OMS, a deficiência de iodo na Europa permanece como problema de saúde pública, ainda que seja predominante a forma leve da carência. Em 2011, ainda existiam 32 países com esse problema no mundo, e 11 (34%) deles estavam na Europa, o maior percentual em termos continentais. Por outro lado, a obesidade também tem se revelado como importante desafio na Europa, com rápido crescimento entre os grupos de menor nível de renda e escolaridade.

Nos Estados Unidos, a manutenção de profundas desigualdades de renda e raça também tem contribuído para problemas nos padrões dietéticos. Os mais pobres e que vivem em condição de insegurança alimentar têm maior probabilidade de serem obesos, uma vez que estão mais expostos a reduzida qualidade dos alimentos a preço acessível.

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Assim, a análise histórica dos dados nutricionais reafirma que, embora tenha havido importantes avanços com a redução de déficits nutricionais no panorama nacional e suas regiões, ainda há a presença de intensas desigualdades no Brasil e no mundo e estas se manifestam de forma injusta em grupos vulneráveis. Além disso, os agravos se sobrepõem e somam-se ao longo do tempo, e até mesmo onde pareciam superados reemergem com características específicas e adaptadas ao novo meio constantemente modificado pelo homem.

Os paradoxos entre escassez e excessos, o global e o local, o desenvolvimento e a desigualdade, são constantes contradições da sociedade pós-moderna e têm interferido na forma de se comportar, comer, se relacionar e adoecer das pessoas. O que parecia duas faces opostas da mesma moeda aparenta ser tão homogêneo quanto o movimento capitalista de uniformizar a sociedade a partir do consumo. À medida em que a obesidade, a anemia e outras carências nutricionais convivem no mesmo corpo e em todas as classes sociais, se diferenciam pelo contexto sociocultural em que estas pessoas estão inseridas e podem interferir nos desdobramentos em virtude do acesso, conhecimento e outras condições, ou a falta delas, de enfrentamento do problema."

Continua...

Confira o vídeo:

"O Desenvolvimento Econômico "Impulsiona a Transição Nutricional"

*Sobre os autores:

Nathália Paula de Souza e Eduarda Ângela Pessoa Cesse, Departamento de Saúde Coletiva, Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães, Fiocruz. Av. Professor Moraes Rego s/n, Cidade Universitária. 50740-465 Recife PE Brasil.

Pedro Israel Cabral de Lira e Fernanda Cristina de Lima Pinto, Departamento de Nutrição, Centro de Ciências da Saúde, Universidade Federal de Pernambuco. Recife PE Brasil.

Annick Fontbonne, UMR 204 Nutripass, IRD, SupAgro, Université Montpellier. Montpellier França.

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