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Josué de Castro e o pensamento social brasileiro (Parte 5): Geografia da fome. Fome, saúde e socieda

  • Por ONutricional
  • 13 de fev. de 2018
  • 9 min de leitura

Por Mercês de Fátima dos Santos Silva e Everardo Duarte Nunes

O resultado das reflexões e das pesquisas de campo na direção de políticas sociais de alimentação culminaram na elaboração do manifesto político-científico, "Geografia da fome" (1946), em que Josué de Castro denuncia a fome como fenômeno político social. Essa obra é a síntese de seus estudos anteriores e é a base metodológica de seus escritos subsequentes. Além disso é fruto da colaboração do grupo de estudiosos de todo o Brasil, sobre a situação da fome, que elaborou um verdadeiro mapeamento da fome brasileira nos quatro cantos do país, subsidiado e patrocinado pelo Serviço de Alimentação da Previdência Social (SAPS).

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Com suas várias edições, que foram realizadas nos anos de 1950 e 1960, "Geografia da Fome" apresentou-se como a tela sobre Brasil, pintada por Castro, que vai ganhando cores, matizes e contrastes na busca de construir uma sociedade democrática e moderna, fugindo das análises essencialista e naturalizadora das desigualdades sociais e de interpretações e ações importadas de fora para dentro. Para Castro, a saída para formação de um projeto nacional seria colocar em pauta a elaboração de um projeto equitativo entre as regiões brasileiras, economicamente e socialmente desiguais, através de planejamento de políticas agrícolas econômicas de abastecimento de alimentos, capaz de atender a todos os brasileiros. O investimento na agricultura viabilizaria melhores condições de vida e produziria saúde para população.

Nesta fase, nota-se a influência do discurso nacional-desenvolvimentista, que tanto influenciou o movimento sanitarista neste período (sanitarismo-desenvolvimentista), liderado por Mário Magalhães. O sanitarismo desenvolvimentista buscou associar os problemas de saúde com os determinantes sociais, apostando que com a melhoria dos determinantes sociais, a produção de saúde da população se elevaria, em contraposição à ideia de que era o investimento inicial no setor da saúde a chave para modernização, ignorando as questões socioeconômicas.

Nesse sentido, “Geografia da Fome” apresentou- se como um estudo de maior organicidade do pensamento de Castro em relação à fase 1930-1940, em que a concepção de ciclo vicioso (doença-pobreza-doença) parecia ser central na sua perspectiva, embora não tenha abandonado totalmente tal perspectiva, mas a partir dessa obra ela não se apresentaria como matriz de operacionalização de um progresso social. Na obra em tela, o conceito de fome apresenta- se mais lapidado, marcado por uma mudança em relação aos estudos anteriores, em que fome e subnutrição apareciam frequentemente como sinônimos, trazendo grande impacto nos estudos sobre a realidade brasileira. Ao adotar a fome como temática central revelou sua compreensão acerca da importância da transdisciplinaridade na abordagem da problemática, correlacionando fome ao problema do subdesenvolvimento brasileiro, como bem sinaliza Taranto.

Em síntese, "Geografia da fome" traz à tona algumas das interpretações mais relevantes sobre a situação alimentar brasileira, lançando o primeiro manifesto-científico-propositivo para construção de um Plano de Política Pública de Segurança Alimentar no Brasil. Subjazem a esta sua discussão os aspectos do processo de construção do Estado-nação, o desenvolvimentismo nacional e o papel dos intelectuais brasileiros. Tais questões somam-se à preocupação do autor com a formação de ações propositivas que levassem a mudanças sociais e redefinições das condições de exclusão social de parcela significativa da população brasileira.

Com a publicação de "Geografia da Fome", Castro foi bastante criticado por ufanistas que o acusavam de desvalorizar o Brasil no estrangeiro. Entretanto, seguindo o mesmo método aplicado a esta obra, Castro escreveu “Geopolítica da Fome” (1951) para comprovar que a fome não era um fenômeno exclusivo do Brasil, mas de todos os países do globo, mas a forma de buscar soluções para tal problemática é que seria peculiar de cada país e cada região.

Neste livro, “Geopolítica da Fome”, Castro apresentou uma ampla discussão sobre neomalthusianismo, subdesenvolvimento e neocolonialismo. Para Castro, nas preocupações dos neomalthusianos não constavam qualquer perspectiva de alteração da realidade, isto é, de modificação das estruturas econômicas e sociais ou das relações entre países ricos e pobres. Pelo contrário, constituíam agravantes ao culpabilizar os países pobres e os pobres, de forma geral, pelos males sociais. Assim como não mencionava a quem beneficiaria a preservação de “importantes recursos naturais”, já que, notadamente, eram os países mais desenvolvidos os responsáveis pela degradação do meio ambiente. Dessa maneira, em sua análise, o problema residia, de fato, no insustentável padrão de consumo das sociedades desenvolvidas e na manutenção dos privilégios de classe. Sendo assim, dependendo do modo de distribuição da renda e da riqueza, poder-se-ia ter o aumento da fome mesmo sem haver explosão demográfica.

Na compreensão de Castro, a industrialização, a urbanização e o desenvolvimento científico possibilitaram expandir a produtividade de alimentos, que subverteria as condições de miséria e pobreza, mas não a fizeram tendo em vista seu caráter exclusivamente de exploração de trabalho, visando o lucro. Era necessário desvendar os interesses econômicos neocoloniais orientados de uma prática que fez da produção, da distribuição e do consumo de alimento, elementos dirigidos no sentido de seus exclusivos interesses financeiros e não sociais. Nesse sentido, era necessário admitir que a evolução científica e o progresso industrial não eram para todos e também poderiam ser responsáveis pela manutenção do status quo.

Tais reflexões fizeram Castro relativizar a perspectiva progressista linear, a partir do diálogo com Sorokin (1889-1968), que não acreditava na perspectiva linear sobre os processos sócio-históricos. Assim, Castro partia do entendimento de que os processos socioculturais se revelavam multiformes e multidirecionais, sendo em algumas conexões lineares e em outras cíclicas. Além disso, com o processo de industrialização e exploração social no Ocidente, houve uma transformação integral de um mundo para o outro, onde as convicções sociais e os valores ganharam outro significado nos países colonizados.

Para Castro, o problema da fome era de ordem socialmente construída pelo movimento neocolonianismo, o qual foi preponderante para a reprodução e a produção desse fenômeno social e para o qual a solução seria refundar nossas estruturas sociais, no caso brasileiro, a partir do investimento na agricultura, pautado por um Programa de Políticas Públicas de Segurança Alimentar. Com isso, Castro chama a atenção para a necessidade de o Brasil investir na elaboração e no planejamento de políticas agrícolas a partir de reformas sociais, como a reforma agrária.

Entretanto, Castro pontuava que sozinhos os países subdesenvolvidos não conseguiriam sair da calamidade social em que se encontravam; era necessário, para além de construir projetos políticos próprios, pensar o desenvolvimento a partir de uma economia social de cooperação internacional. Ao presidir a FAO (Food and Agriculture Organization of the United Nation) entre 1952-1956, concluiu que os países desenvolvidos, que estavam à frente da FAO, não tratavam com devida atenção os problemas de segurança alimentar dos países subdesenvolvidos. Assim, deixou o cargo sem tentar a reeleição. Logo após deixar a presidência da FAO, Castro fundou, junto com Abbé Pierre, na cidade de Paris, a Associação Mundial de Combate à Fome (ASCOFAM), tornando-se presidente da associação, que contava também com apoio de Louis Joseph Lebret, Lord Boyd Orr e René Dumont. A ASCOFAM surgiu como um manifesto inicialmente publicado em 30 páginas e, posteriormente, ampliado para 110 páginas que se tornou “O Livro Negro da Fome” em 1960.

A escolha de escrever um livro-manifesto teve o objetivo de chamar a atenção para a necessidade de criação de um governo supranacional entre nações, povos e diferentes classes, voltado para a formulação de uma nova teoria do desenvolvimento econômico nos países subdesenvolvidos. Essa nova teoria deveria integrar os fatores humanos à Economia, de modo a fazer com que o desenvolvimento econômico fosse um meio de proporcionar dignidade a todos. Esse manifesto foi publicado em vários idiomas e concentrou-se em quatro setores de atuação: 1) sensibilizar e despertar a consciência universal sobre o problema; 2) realizar pesquisa, investigações e inquéritos sobre a situação alimentar; 3) formar pessoal qualificado; 4) elaborar projetos específicos de âmbito nacional ou regional.

Influenciado pela noção de “Desenvolvimento Harmonizado” de Lebret, Castro trabalhou para o reconhecimento do subdesenvolvimento através da fome e da exploração colonial, evidenciando a plataforma de reestruturação agrária como meio de empreender planos de desenvolvimento no campo rural e urbano do país a fim de construir uma sociedade sem fome. O pressuposto era que o desenvolvimento econômico proposto não seria o caminho a ser trilhado para combater à fome. Fazia-se necessário pensar outro modelo de desenvolvimento, promovido por uma cooperação mundial com objetivo de criar fatores de proteção para os seres humanos, uma economia humanizada, voltada para o “desenvolvimento do homem pelo homem”.

Cabe ressaltar que Castro deixa claro que era contra o capitalismo liberal, que operava a partir da livre iniciativa, geradora de caos ao conjunto da produção, distribuição e consumo de alimentos, mas também não se associava à planificação do socialismo, que considerava tecnocrática e ditatorial. Seu projeto de cooperação mundial vislumbrava uma terceira via com ativa participação das populações, das organizações civis e estatais, numa estrutura de poder descentralizado, mas com decisões coordenadas, visando o uso racional dos recursos naturais, sem descartar os avanços tecnológicos e industriais para atingir tais fins.

Ao negar a visão dualista de mundo (capitalismo x socialismo), Castro vislumbrava um sentimento de humanidade promovido por uma cooperação global suprapartidária, sem uma ideologia em si, mas com objetivo de pensar o mecanismo para uma economia humanizada, em que o papel participativo das populações seria ativo, haja vista que “os povos famintos passaram da resignação à revolta e, por isto, os povos da abundância terão que passar, sem perda de tempo, das explicações hipócritas à ação criadora” ou passaríamos a presenciar a degradação do mundo.

No debate atual, o paradigma do desenvolvimento foi substituído pelo da globalização e do papel do Estado frente à abertura dos mercados e ao aparecimento de numerosos atores multinacionais, que fizeram ainda mais com que a alimentação perdesse seu papel estratégico central na luta pelas desigualdades regionais e sociais, em consequência da sua visão neoliberal dominante, centralizada na especulação de mercado, que tenta a todo custo diminuir consideravelmente a importância das políticas públicas sociais e a cooperação internacional na solução do problema da segurança alimentar.

Pela tese de Castro, isso explicaria em parte o porquê da persistência da fome na contemporaneidade, onde convivemos com abundância, com índices altíssimos de produção alimentar, e com condições de destruição humana por carência alimentar, negando as necessidades básicas de alguns seres humanos, para atender as exigências do capital em suas relações de produção.

Considerações finais

Há várias revisitações sobre a trajetória e a obra de Josué de Castro, que se mantém em crescimento constante, com debates profícuos em torno do tema. Temática que se tornou símbolo das políticas sociais de muitos países da América Latina, sobretudo, no Brasil, nas primeiras décadas do milênio. Boa parte dos estudos são focalizados em sua obra magna “Geografia da Fome”, que a nosso ver, poderá causar alguns equívocos de interpretação sobre ele, que se constituiu como um autor em processo de constante lapidação/atualização de seu pensamento, sem com isso perder a principal marca de seu pensamento, o ecletismo intelectual, o humanismo social e a luta contra a fome.

Na atualidade, a fome ainda é uma preocupação, sendo uma das pautas da agenda do milênio. Entretanto, é preciso não esquecer da premissa de que a fome é uma manifestação biológica de um problema social, portanto, produzido pelo próprio homem. No caso específico do nosso modo de produção capitalista, que promove a desigual distribuição, colabora para desprover a massa populacional do acesso aos meios produtivos, fazendo com que os indivíduos tenham o acesso à alimentação condicionado pela renda. Desse modo, o direito básico da existência humana, tornou-se mercadoria. Uma mercadoria abundante, mas com acesso limitado. Quem delimita este acesso? O modo de produção escolhido pelas ações humanas. Assim, são nossas ações que contribuem para a reprodução diária, intencional e contínua da fome. Os dados dessa reprodução, ainda, são alarmantes. De acordo com o relatório da ONU (2014), há mais de 800 milhões de pessoas no mundo que ainda sofrem de fome crônica.

Como nos revela Ziegler, no seu livro “Destruição em Massa – Geopolítica da fome”, a fome ainda se constitui um grande problema mundial e vem aumentando na maioria dos países, com exceção do Brasil e da China, que contam com programas sociais, no caso brasileiro, e a reforma agrária no país asiático. Entretanto, no mundo inteiro há muito o que se fazer para evitar a destruição em massa (a morte por causa da fome), que mata 1% da população a cada ano decorrente de fome quantitativa (fome epidêmica, como conceituada por Castro) e suas consequências mais diretas ou por causa da fome indireta; e (fome endêmica ou crônica, também analisada por Castro) que causa enfermidades devido à baixa imunidade, causada pela falta de alguns nutrientes. Ambas as manifestações da fome, atingem, atualmente, 18,2 milhões de pessoas por ano.

Ziegler argumenta ainda que as grandes empresas de alimentos, que dominam a formação de mercado, são quem decide quem morrerá de fome. Isto porque a população pobre e extremamente pobre, que vive nas favelas, não produz e precisa comprar sua alimentação diária, e quando por causa das especulações os alimentos como milho, trigo, arroz sobe, os preços dos demais alimentos sobem e a população pobre não tem renda para comprar. Devido a isso que mesmo Brasil e China, que apresentam melhoria da situação de fome, não estariam completamente seguros de novas crises. Em Castro, observamos que a saída para tal problemática é a refundação da estrutura socioeconômica, visando uma economia humanizada, a partir de uma política econômica de cooperação, caso contrário nos autodestruiremos.

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