Josué de Castro e o pensamento social brasileiro (Parte 3): A tese "Mal é de fome e não de raça
- Alexandre Rodrigues Lobo
- 18 de jan. de 2018
- 4 min de leitura

Por Mercês de Fátima dos Santos Silva e Everardo Duarte Nunes
react-text: 1918 Reproduzido da /react-text Revista Ciência e Saúde Coletiva react-text: 1921 (DOI: 10.1590/1413-812320172211.35002016) /react-text
Em seus estudos sobre a fome, Josué de Castro parte da assertiva de que a fome pode intervir como força social, capaz de modificar a conduta e o comportamento do homem, agindo, assim, em consequência, como um fator de desajuste entre indivíduos, povos e nações. Esta lógica operada por Castro, inicialmente, nos anos de 1930, leva-o a elaborar a tese "mal é de fome e não de raça", apresentando rupturas, continuidades e descontinuidade com o debate brasileiro iniciado no final do século XIX, colocando em pauta as bases científicas da alimentação racional para explicação de determinados males sociais. Na verdade, essa tese, em suas prerrogativas, tornou-se um marco na história da ciência da Nutrição, que assume o debate de fome/subalimentação, antes analisado como questão apenas de higienização pelos médicos sanitaristas.

Desse modo, o elo de continuidade com o debate anterior, sob influência das ideias de [Arthur de] Gobineau de superioridade da raça ariana pura e o determinismo do meio, foi estabelecido com base na reinterpretação dessas análises que dominaram o debate público. Castro considerava o debate de raça pura, ultrapassado e etnocêntrico, ressaltando que outros autores como Manoel Bonfim, já havia recolocado tais questões no debate nacional, além disso, o mal social que nos atinge, fome/subalimentação, também atinge outros países com "clima não tão tropical como o nosso e onde não se processou um caldeamento com a raça". Grosso modo, sua tese “Mal de fome e não de raça”, contribuiu para a sua passagem da antropologia física para antropologia cultural, retirando o processo de meio e raça da discussão genética, aproximando da teoria culturalista de Franz Boas, difundida no Brasil por [Gilberto] Freyre. Entretanto, como assinala Lima, se a teoria cultural se afastava do biológico em direção ao social, estas dimensões se reencontravam ao atribuir como o mal social a fome/subalimentação e a necessidade da formação de uma educação racional alimentar. Essa educação alimentar seria sistematizada pela ciência da nutrição, que reconstituiu o biológico “como fator de evolução social em novas bases”.
Essa reconstituição do biológico em direção ao social sofreu forte influência do Movimento Sanitarista da Primeira República, que concentrava suas ações na explicação de que o Brasil estava doente e que seria necessário torná-lo sadio se quiséssemos construir a nacionalidade, colocando como agenda pública central do país os problemas de saúde, qualificando como científica a natureza de sua proposta. Assim, os adeptos dessa proposta divulgaram uma nova explicação para as origens dos “males do Brasil” longe do determinismo racial e climático e próximo das ideias de Euclides da Cunha (1902), que trazia a constatação de que éramos um país dividido entre o Brasil real, “atrasado” e o Brasil ideal, “moderno”, mostrando os descompassos entre o Brasil urbano e rural.
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Assim, podemos notar que essa é a fase em que os estudos de Castro apresentam um franco diálogo com o positivismo, concentrando-se no método mais fisiológico, a partir da distinção entre o normal (população bem alimentada) e o patológico (doenças carenciais), com a finalidade de agir sobre este último com ações racionais na tentativa de constituição de uma educação alimentar, para que o Brasil alcançasse uma dieta alimentar que pudesse modernizar o país e curar a patologia da fome. Além do debate travado com o Movimento Sanitarista I, essa tese de Castro, sofrerá forte influência dos romancistas nordestinos da geração de 1930, marcados por uma literatura crítica que procura desvendar realidade social brasileira. Com esses romancistas, enfatizaram-se as desigualdades sociais entre a casa grande e a senzala, à naturalização da problemática do Nordeste, sobretudo, em relação à seca, a questão do latifúndio e o processo perverso de modernização nas condições de vida dos trabalhadores no meio rural e urbano.
Por isso, esta aproximação do diálogo entre a dimensão fisiológica/biológica com a dimensão sociocultural, embora no primeiro momento não se apresentasse tão óbvia, por perpassar dois tempos de sua obra (1930-1940 e 1940-1946), representava a tentativa de analisar a realidade brasileira a partir da relação estabelecida entre ambiente, sociedade, saúde e alimentação, compreendendo que o processo de saúde e doença tem relação com o meio, que, embora não determine, exerce influência sobre a saúde das populações.
Confira a série de vídeos sobre "Determinantes sociais de saúde":
Parte 1:
Parte 2:
Parte 3:
Parte 4:
Parte 5:
Com os estudos realizados nesta fase, Castro forneceu modelos explicativos para o campo Ciência da Nutrição, indicando a temática fome/subalimentação como problema central passível de ser compreendido a partir de marco biossociológico e pela interseção realizada entre o método fisiológico e o geográfico, primeiramente como meio de mapear as doenças carenciais provocadas pela má alimentação e, posteriormente, como método capaz de tornar compreensível, a partir da delimitação e do entendimento de fatores sócio-históricos, as causas desse mal e suas ramificações como produtores de desigualdade social.
Continua...
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