(Des)nutrição: aspectos conceituais, históricos e antropológicos
- Por ONutricional
- 28 de out. de 2017
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Do artigo: "A (des)nutrição e o novo padrão epidemiológico em um contexto de desenvolvimento e desigualdades", por Nathália Paula de Souza, Pedro Israel Cabral de Lira, Annick Fontbonne, Fernanda Cristina de Lima Pinto e Eduarda Ângela Pessoa Cesse*, publicado na revista Ciência & Saúde Coletiva.

"A abordagem da desnutrição no Brasil perpassa a evolução e o desenvolvimento social, político e econômico do próprio país. Por isso, é inevitável não retomar a contribuição pioneira e visionária do pernambucano Josué de Castro, que rompeu com a “conspiração do silêncio” que permeava a temática da “fome” entre as décadas de 1940 e 1950 e auxiliou na compreensão da problemática em todas as suas dimensões e naturezas, ao conjugar aspectos biológicos, antropológicos,
socioeconômicos e políticos.

Josué de Castro foi apresentado à fome, segundo o mesmo, nos mangues e bairros miseráveis do Recife. O autor retrata em seu clássico "Geografia da Fome" as características que envolvem essa temática nas diversas regiões do país, as quais divide em Amazônia, nordeste açucareiro, nordeste seco, centro-oeste e sul. Em meados de 1940, a fome, endêmica e epidêmica, foi identificada nas três primeiras regiões e a desnutrição em todas elas. Para situar o leitor faz-se importante esclarecer a natureza distinta e conceitual de alguns termos já usados por autores clássicos, como Josué de Castro, mas ainda polêmicos na literatura. Desnutrição, fome e pobreza costumam ser utilizados como sinônimos e, na verdade não o são.

Monteiro conseguiu descrever, em um ensaio, as diferenças existentes entre esses termos, por isso adotaremos essa ótica conceitual para direcionaras inter-relações nesta primeira parte do texto. Para o autor, a pobreza constitui a dimensão mais ampla e corresponde a não satisfação de necessidades básicas como alimentação, moradia, lazer, vestuário, saúde, educação e outras. É comumente mensurada através da renda para alcançar as necessidades elementares citadas e quando abaixo da linha da pobreza, ou seja, nível crítico de renda, famílias e indivíduos são consideradas pobres. O termo “indigência” pode ser empregado quando o cálculo da linha da pobreza considera apenas os custos familiares com a alimentação.
Ainda, para Monteiro, a fome pode se manifestar de forma aguda ou crônica. A fome aguda equivale a ausência do alimento e, por isso, pode se manifestar na magreza. Enquanto que a fome crônica, maior interesse desta reflexão, corresponde a oferta insuficiente de energia e nutrientes para desempenho das atividades cotidianas e, por isso, pode se manifestar como desnutrição energética ou energético-proteica crônica. A mensuração direta da fome é de difícil operacionalização e, por isso, predominam os métodos indiretos. No Brasil, a pesquisa que mais se aproximou dessa perspectiva foi o Estudo Nacional da Despesa Familiar (Endef), que avaliou o consumo familiar por meio de pesagem dos alimentos, da renda, além do estado nutricional.
As diversas modalidades de deficiências nutricionais ou a ausência de elementos importantes na alimentação podem ser entendidas como desnutrição. Esta se manifesta na forma de doenças que podem ter origem no aporte alimentar insuficiente, tanto quanto no desmame precoce, higiene precária, infecções persistentes que comprometem o aproveitamento comprometem o aproveitamento biológico dos alimentos, excesso alimentar com carências específicas e outros. O crescimento das crianças (altura por idade) é um dos melhores indicadores globais de saúde e também permite inferências quanto à desigualdade nas populações, uma vez que a própria desnutrição é um dos produtos da desigualdade social.

A dimensão da pobreza parece ser a que mais se aproxima da perspectiva da Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) e envolve os demais conceitos. Mas a SAN, sozinha, não garante a superação da fome e da desnutrição. A fome pode surgir sem a pobreza em situações momentâneas de guerra e catástrofes naturais, como os impactos do terremoto e tsunami de Tohoku no Japão, em 2011, e o rompimento das barragens da Samarco, no Brasil (Mariana-MG), em 2015. Por outro lado, uma situação atual e ao mesmo tempo antiga é a permanência da desnutrição com caráter trans-social, a exemplo da anemia no Brasil e a carência de iodo na Europa. O aspecto comum a todas estas categorias que comprometem o estado de saúde e a nutrição é a vulnerabilidade dos grupos ou pessoas acometidas.
Esse novo padrão de adoecimento da população brasileira está fortemente relacionado com os processos históricos de interferência política nas estruturas de produção, comercialização e exportação. Estes foram decisivos para o desmonte da política agrícola e de abastecimento e para o fortalecimento do agronegócio.
Em meados de 1960 e 1970, as políticas alimentares tinham ênfase na distribuição e abastecimento de alimentos e as políticas de incentivo agrícola priorizavam os grandes produtores. Por volta de 1990, com o avanço da globalização e do neoliberalismo econômico direcionando as políticas públicas no Brasil e no mundo, existiam poucas estratégias estatais para subsidiar o abastecimento de alimentos e houve redução das despesas com a agricultura. Paralelamente, organizou-se um modelo de políticas compensatórias de proteção direta à população carente, mas sem vislumbrar o enfrentamento real da problemática da fome.
Ao recorrer a políticas compensatórias, priorizaram-se grupos organizados e os recursos públicos começaram a ser direcionados para a iniciativa privada, na agricultura e em outros setores. Os pequenos agricultores foram diretamente atingidos e praticamente obrigados a se desvincularem da atividade do campo, fomentando o êxodo rural, enquanto que os grandes empresários mantiveram crescimento econômico.
Em paralelo ao processo de urbanização, intensificou- se a produção e a oferta de alimentos industrializados, favorecendo as modificações nos hábitos alimentares, com a presença cada vez maior destes alimentos nas feiras das famílias. Isto ratificou a desvalorização do homem do campo, uma vez que o alimento in natura se distancia cada vez mais do consumidor e passa a seguir outros circuitos que visam sua modificação pela indústria, aumento do tempo de prateleira, empacotamento e, por fim, ganho de espaço nos supermercados.
Ao refletir sobre o patrimônio das culturas alimentares, Jesús Hernández, relata que o processo de homogeneização decorrente da globalização tem conduzido à perda da diversidade nos planos econômico, ecológico e cultural. O surgimento de novos espaços como o “supermercado”, por exemplo, com características muito semelhantes em todo o mundo, com as mesmas marcas, as mesmas franquias e as mesmas comidas, faz parte desse processo que conduz ao desaparecimento das características particulares de cada local, região ou país e expansão generalizada de modos de vida globais.
Esses novos espaços sociais também fazem lembrar o “homem gabiru” e os “caranguejos-com-cérebro” que surgiram na década de noventa a partir da releitura crítica do “homem caranguejo” de Josué de Castro em meio a retirada do homem da lama e transferência para o asfalto em virtude da construção das “cidades”. A primeira expressão foi relatada por Portella e Aamot e a segunda pelo Movimento Manguebeat no “Manifesto caranguejos com cérebro I”, ambas bem retratadas na obra de Chico Science.
Melo Filho faz uma análise da hermenêutica do caranguejo e, ao final, relaciona o “homem-gabiru” com as mudanças nos espaços sociais promovidos pelo capitalismo, que levaram ao desaparecimento/aterramento dos mangues e à alocação das pessoas em áreas tão ou mais insalubres. Por isso a analogia com outro “bicho” que seria o gabiru. Enquanto que a expressão “caranguejos-com-cérebro” parece encorajar esses mesmos homens a seguir em frente e, não mais para trás, como os caranguejos, a usar suas antenas e a sair da lama em busca de novas vibrações como um percurso de emancipação."
*Sobre os autores:
Nathália Paula de Souza e Eduarda Ângela Pessoa Cesse, Departamento de Saúde Coletiva, Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães, Fiocruz. Av. Professor Moraes Rego s/n, Cidade Universitária. 50740-465 Recife PE Brasil.
Pedro Israel Cabral de Lira e Fernanda Cristina de Lima Pinto, Departamento de Nutrição, Centro de Ciências da Saúde, Universidade Federal de Pernambuco. Recife PE Brasil.
Annick Fontbonne, UMR 204 Nutripass, IRD, SupAgro, Université Montpellier. Montpellier França.
Continua...
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