Gilles Brougère: A criança e a cultura lúdica (Parte 3). A produção da cultura lúdica
- Por ONutricional
- 3 de jan. de 2018
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Reproduzido da /react-text Revista da Faculdade de Educação
Por Gilles Brougère:

"Seria interessante tentar levantar hipóteses sobre a produção da cultura lúdica. Na realidade, como qualquer cultura, ela não existe pairando acima de nossas cabeças, mas é produzida pelos indivíduos que dela participam. Existe na medida em que é ativada por operações concretas que são as próprias atividades lúdicas. Pode-se dizer que é produzida por um duplo movimento interno e externo. A criança adquire, constrói sua cultura lúdica brincando. É o conjunto de sua experiência lúdica acumulada, começando pelas primeiras brincadeiras de bebê, evocadas anteriormente, que constitui sua cultura lúdica. Essa experiência é adquirida pela participação em jogos com os companheiros, pela observação de outras crianças (podemos ver no recreio os pequenos olhando os mais velhos antes de se lançarem por sua vez na mesma brincadeira), pela manipulação cada vez maior de objetos de jogo. Essa experiência permite o enriquecimento do jogo em função evidentemente das competências da criança, e é nesse nível que o substrato biológico e psicológico intervêm para determinar do que a criança é capaz. Os jogos de ficção supõem a aquisição da capacidade de simbolização para existirem. O desenvolvimento da criança determina as experiências possíveis, mas não produz por si mesmo a cultura lúdica. Esta, origina-se das interações sociais, do contato direto ou indireto (manipulação do brinquedo: quem o concebeu não está presente, mas trata-se realmente de uma interação social). A cultura lúdica, como toda cultura, é o produto da interação social que lança suas raízes na interação precoce entre a mãe e o bebê.
Isso significa que essa experiência não é transferida para o indivíduo. Ele é um co-construtor. Toda interação supõe efetivamente uma interpretação das significações dadas aos objetos dessa interação (indivíduos, ações, objetos materiais), e a criança vai agir em função da significação que vai dar a esses objetos, adaptando-se à reação dos outros elementos da interação, para reagir também e produzir assim novas significações que vão ser interpretadas pelos outros. A cultura lúdica, visto resultar de uma experiência lúdica, é então produzida pelo sujeito social. O termo "construção" é mais legitimamente empregado em sociologia, mas percebe-se aqui uma dimensão de criação, se concordarmos sobre a definição desse termo.
Mas a cultura lúdica, mesmo que esse isolamento conceitual corresponda mais a uma necessidade de clareza na exposição do que a uma realidade, é também objeto de uma produção externa. De fato, essa experiência se alimenta continuamente de elementos vindos do exterior, não oriundos do jogo. A cultura lúdica não está isolada da cultura geral. Essa influência é multiforme e começa com o ambiente, as condições materiais. As proibições dos pais, dos mestres, o espaço colocado à disposição da escola, na cidade, em casa, vão pesar sobre a experiência lúdica. Mas o processo é indireto, já que aí também se trata de uma interação simbólica, pois, ao brincar, a criança interpreta os elementos que serão inseridos, de acordo com sua interpretação e não diretamente.
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Alguns elementos parecem ter uma incidência especial sobre a cultura lúdica. Trata-se hoje da cultura oferecida pela mídia, com a qual as crianças estão em contato: a televisão e o brinquedo. A televisão, assim como o brinquedo, transmite hoje conteúdos e às vezes esquemas que contribuem para a modificação da cultura lúdica que vem se tornando internacional. Mas, embora arriscando-me a repetir, eu diria que o processo é o mesmo. Barbie intervém no jogo na base da interpretação que a criança faz das significações que ela traz. De uma certa forma, esses novos modos de transmissão substituíram os modos antigos de transmissão oral dentro de uma faixa etária, propondo modelos de atividades lúdicas ou de objetos lúdicos a construir. Não estamos dizendo que o sistema antigo foi menos impositivo, de forma alguma.
Na realidade, há jogo quando a criança dispõe de significações, de esquemas em estruturas que ela constrói no contexto de interações sociais que lhe dão acesso a eles. Assim ela co-produz sua cultura lúdica, diversificada conforme os indivíduos, o sexo, a idade, o meio social. Efetivamente, de acordo com essas categorias, as experiências e as interações serão diferentes. Meninas e meninos não farão as mesmas experiências e as interações (como com os brinquedos que ganham) não serão as mesmas. Então, portadores de uma experiência lúdica acumulada, o uso que farão dos mesmos brinquedos será diferente. Observamos meninas e meninos brincando com bonecos fantásticos idênticos (da série He-Man, Mestres do Universo). Os meninos inventavam jogos de guerra bastante semelhantes a outros jogos com outros objetos, já as meninas, em numerosos casos, utilizavam os bonecos para reproduzir os atos essenciais da vida cotidiana (comer, dormir), reproduzindo os esquemas de ação usados com as bonecas. Descobre-se assim uma combinação, uma negociação entre as significações veiculadas pelos objetos lúdicos e as de que as crianças dispõem graças à experiência lúdica anterior.
Evidentemente deve-se desconfiar das palavras que usamos e evitar que a cultura lúdica se constitua em substância: ela só existe potencialmente – trata-se do conjunto de elementos de que uma criança pode valer-se para seus jogos. Da mesma maneira que a linguagem com suas regras e palavras, ela existe apenas como virtualidade.
Mas o jogo deixa menos marcas que a linguagem, e há os que pensam que ele só pode ser associado à subjetividade de um indivíduo que obedece ao princípio do prazer. Trata-se de fato de um ato social que produz uma cultura (um conjunto de significações) específica e, ao mesmo tempo, é produzido por uma cultura.
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Limitamo-nos à cultura lúdica infantil, mas existe também uma cultura lúdica adulta, e é preciso igualmente situá-la dentro da cultura infantil, isto é, no interior de um conjunto de significações produzidas para e pela criança. A sociedade propõe numerosos produtos (livros, filmes, brinquedos) às crianças. Esses produtos integram as representações que os adultos fazem das crianças, bem como os conhecimentos sobre a criança disponíveis numa determinada época. Mas o que caracteriza a cultura lúdica é que apenas em parte ela é uma produção da sociedade adulta, pelas restrições materiais impostas à criança. Ela é igualmente a reação da criança ao conjunto das propostas culturais, das interações que lhe são mais ou menos impostas. Daí advém a riqueza, mas também a complexidade de uma cultura em que se encontram tanto as marcas das concepções adultas quanto a forma como a criança se adapta a elas. Os analistas acentuam, então, uns, o condicionamento, outros, a inventividade, a criação infantil. Mas o interessante é justamente poder considerar os dois aspectos presentes num processo complexo de produção de significações pelas crianças. É claro que o jogo é controlado pelos adultos por diferentes meios, mas há na interação lúdica, solitária e coletiva, algo de irredutível aos constrangimentos e suportes iniciais: é a reformulação disso pela interpretação da criança, a abertura à produção de significações inassimiláveis às condições preliminares."
Continua...
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