Avanços das neurociências para a alfabetização e a leitura
- Por ONutricional
- 24 de dez. de 2017
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Artigo publicado originalmente no volume de jul/set de 2013 da revista Letras de Hoje. Por Leonor Scliar-Cabral.

Fundamento epistemológico: O fundamento epistemológico deste capítulo reside em reconhecer a base biopsicológica da cultura e, portanto, da linguagem (D’Aquili, EG. The biopsychological determinants of culture. An Addison-Wesley Module in Anthropology. Reading, Mass. Addison-Wesley Publishing Co. 1972. v. 13). Em decorrência, apesar da tradição contrária no mundo ocidental, não se podem dissociar as ciências humanas das biológicas para explicar a aprendizagem e o funcionamento da leitura.
Segundo Jean-Pierre Changeux:
"Sem dúvida, em virtude do dualismo platônico, a tradição ocidental estabeleceu uma separação – que eu não hesitaria de qualificar como trágica – entre as ciências do homem e as ciências biológicas, a tal ponto que por muito tempo houve um acordo em opor o biológico ao cultural, a natureza à cultura, os genes à aprendizagem. Um dos pontos fortes das neurociências contemporâneas – a obra de Stanislas Dehaene o revela otimamente – é o de haver demonstrado que, no homem, o cultural não pode ser pensado sem o biológico e que o cerebral não existe sem uma impregnação poderosa do ambiente."
Com efeito, somente se poderá responder a pergunta de por que a espécie humana é a única capaz de produzir cultura (Cassirer E. An essay on man – An introduction to a philosophy of human culture. New Haven, CT: Yale University Press, 1944), se desvendarmos as diferenças entre como está estruturado, amadurece e funciona o cérebro humano e como o está nas demais espécies. As principais diferenças, resumidamente, são:
1. Plasticidade dos neurônios humanos para se reciclarem para novas aprendizagens inclusive as que vão de encontro à programação psicobiológica;
2. Dominância e especialização das várias áreas secundárias e terciárias, no caso da linguagem verbal, localizadas no hemisfério esquerdo e integração nas áreas terciárias;
3. Processamento dos sinais recebidos nas áreas primárias, até transformá-los em formas invariantes mais abstratas emparelhando-as para reconhecimento com as registradas nas áreas secundárias (Invariância: classe que abrange todas as realizações ou fenômenos de um mesmo elemento, como, por exemplo, a letra a que, manuscrita, se realiza de n formas, dependendo da caligrafia de quem escreve, ou o conceito de “cadeira”, que abrange todas as cadeiras que existiram, existem ou existirão, ou suas diferentes representações);
4. Interconexão entre as várias áreas mesmo distantes, inclusive as que processam a significação, sob o comando das áreas terciárias;
5. Arquitetura neuronal capaz de processar formas sucessivamente mais abstratas e complexas: a função semiótica (Função semiótica ou semiológica: função que opera com signos. Distingue-se das operações em nível do sinal, onde ocorre uma resposta contígua ao estímulo);
6. Mecanismos de feedback simultâneos para autocorreção;
7. Memória permanente para reconstituição dos esquemas e padrões aprendidos, o que garante o acionamento do conhecimento prévio.
Com efeito, enquanto nas demais espécies, a resposta aos sinais apresenta contiguidade espaço-temporal, no ser humano, há uma ruptura espaço-temporal, mediada por signos, que se articulam arquitetonicamente em níveis cada vez mais complexos. Bilhões de neurônios armazenam e processam dados em memórias especializadas, interconectadas e continuamente reconstituídas, capazes de aprender as novas invenções produzidas pela cultura.
Reconhecimento das invariâncias: Os neurônios da região occipitotemporal ventral esquerda reconhecem os traços invariantes que compõem as letras, cujos valores são os mesmos, independentes de seu tamanho, da caixa (MAIÚSCULA ou minúscula), da fonte e estilo (imprensa, manuscrita, itálico, negrito ou sublinhado, etc.), ou da posição que ocupam na palavra (Dehaene S. Os neurônios da leitura. Trad. de Leonor Scliar- Cabral. Porto Alegre: Penso, 2012).
Leia mais: "Aprender a ler: uma revolução no cérebro"

O reconhecimento das invariâncias é possível e necessário por duas razões, fundamentalmente: primeira, porque, como mecanismo adaptativo, o sistema visual dos primatas deve reconhecer as formas básicas do que se encontra na natureza, independentemente das variantes que o olhar capta, conforme a distância, o ângulo de visão, a incidência da luz e sombra e a parte em relação ao todo, etc., conforme Grainger, Rey, e Dufau (2008) e Spratting (2005); segunda, porque, e essa é especificamente humana, só essa explica a capacidade dos neurônios da região occipitotemporal ventral esquerda em reconhecer os traços invariantes que compõem as letras: na espécie humana, os respectivos axônios (prolongamentos dos neurônios para levarem a informação a outros neurônios através do mecanismo denominado sinapse) estão ligados a todas as regiões que processam a linguagem verbal e simultaneamente à região que processa o significado.
Dentre as várias indagações que tais colocações suscitam, uma das mais instigantes decorre do fato de as mudanças que se operam nos circuitos neurais não serem de natureza filogenética e sim, epigenética, isto é, decorrem da reciclagem neuronal em consequência da aprendizagem, conforme se pode concluir do trabalho de Morais et al. (2010), a partir de evidências empíricas. No que diz respeito à leitura, não há um período critico para que tal aprendizagem deixe de ser possível.
Novamente, uma distinção importante decorre do fato de que há mudanças importantes, mas não genéticas, pois estas demandam um longo tempo para ocorrerem. Outra questão, também, a ser debatida é a de se, havendo uma especialização para o reconhecimento de traços pertencentes a sistemas culturais, processados por neurônios contíguos aos que processam o reconhecimento dos sinais provindos da natureza, com o mesmo canal de entrada, haja um declínio na capacidade destes últimos.
Continua...
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