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Gilles Brougère: A criança e a cultura lúdica (Parte 2). Tentativa de descrição da cultura lúdica

  • Por ONutricional
  • 11 de dez. de 2017
  • 3 min de leitura

Por Gilles Brougère:

"Tentaremos definir as características da cultura lúdica antes de examinar as relações que ela estabelece com o conjunto da cultura, e as conseqüências que isso pode ter sobre a relação da criança com a cultura numa perspectiva não mais psicológica, mas antropológica.

A cultura lúdica é, antes de tudo, um conjunto de procedimentos que permitem tornar o jogo possível. Com Bateson e Goffman, consideramos efetivamente o jogo como uma atividade de segundo grau, isto é, uma atividade que supõe atribuir às significações de vida comum um outro sentido, o que remete à ideia de fazer-de-conta, de ruptura com as significações da vida cotidiana. Dispor de uma cultura lúdica é dispor de um certo número de referências que permitem interpretar como jogo atividades que poderiam não ser vistas como tais por outras pessoas. Assim é que são raras as crianças que se enganam quando se trata de discriminar no recreio uma briga de verdade e uma briga de brincadeira. Isso não é fácil para os adultos, sobretudo para aqueles que em suas atividades cotidianas se encontram mais afastados das crianças. Não dispor dessas referências é não poder brincar. Seria, por exemplo, reagir com socos de verdade a um convite para uma briga lúdica. Se o jogo é questão de interpretação, a cultura lúdica fornece referências intersubjetivas a essa interpretação, o que não impede evidentemente os erros de interpretação.

A cultura lúdica é, então, composta de um certo número de esquemas que permitem iniciar a brincadeira, já que se trata de produzir uma realidade diferente daquela da vida cotidiana: os verbos no imperfeito, as quadrinhas, os gestos estereotipados do início das brincadeiras compõem assim aquele vocabulário cuja aquisição é indispensável ao jogo.

A cultura lúdica compreende, evidentemente, estruturas de jogo que não se limitam às de jogos com regras. O conjunto das regras de jogo disponíveis para os participantes numa determinada sociedade compõe a cultura lúdica dessa sociedade e as regras que um indivíduo conhece compõem sua própria cultura lúdica. O fato de se tratar de jogos tradicionais ou de jogos recentes não interfere na questão, mas é preciso saber que essa cultura das regras individualiza-se, particulariza-se. Certos grupos adotam regras específicas. A cultura lúdica não é um bloco monolítico mas um conjunto vivo, diversificado conforme os indivíduos e os grupos, em função dos hábitos lúdicos, das condições climáticas ou espaciais.

Mas a cultura lúdica compreende o que se poderia chamar de esquemas de brincadeiras, para distingui-los das regras stricto sensu. Trata-se de regras vagas, de estruturas gerais e imprecisas que permitem organizar jogos de imitação ou de ficção. Encontram-se brincadeiras do tipo "papai e mamãe" em que as crianças dispõem de esquemas que são uma combinação complexa da observação da realidade social, hábitos de jogo e suportes materiais disponíveis. Da mesma forma, sistemas de oposições entre os mocinhos e bandidos constituem esquemas bem gerais utilizáveis em jogos muito diferentes. A cultura lúdica evolui com as transposições do esquema de um tema para outro.

Finalmente a cultura lúdica compreende conteúdos mais precisos que vêm revestir essas estruturas gerais, sob a forma de um personagem (Superman ou qualquer outro) e produzem jogos particulares em função dos interesses das crianças, das modas, da atualidade. A cultura lúdica se apodera de elementos da cultura do meio-ambiente da criança para aclimatá-la ao jogo.

Essa cultura diversifica-se segundo numerosos critérios. Evidentemente, em primeiro lugar, a cultura em que está inserida a criança e sua cultura lúdica. As culturas lúdicas não são (ainda?) idênticas no Japão e nos Estados Unidos. Elas se diversificam também conforme o meio social, a cidade e mais ainda o sexo da criança. É evidente que não se pode ter a mesma cultura lúdica aos 4 e aos 12 anos, mas é interessante observar que a cultura lúdica das meninas e dos meninos é ainda hoje marcada por grandes diferenças, embora possam ter alguns elementos em comum.

Pode-se analisar nossa época destacando as especificidades da cultura lúdica contemporânea, ligadas às características da experiência lúdica em relação, entre outras, com o meio-ambiente e os suportes de que a criança dispõe. Assim desenvolveram-se formas solitárias de jogos, na realidade interações sociais diferidas através de objetos portadores de ações e de significações. Uma das características de nosso tempo é a multiplicação dos brinquedos. Podem-se evocar alguns exemplos como a importância que adquiriram os bonecos, freqüentemente ligados a universos imaginários, valorizando o jogo de projeção num mundo de miniatura. Esse tipo de jogo não é novo, entretanto a cultura lúdica contemporânea enriqueceu e aumentou a importância dessa estrutura lúdica. Não podemos deixar de citar os video-games: uma nova técnica cria novas experiências lúdicas que transformam a cultura lúdica de muitas crianças. Tudo isso mostra a importância do objeto na constituição da cultura lúdica contemporânea."

Continua...

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