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Josué de Castro e o pensamento social brasileiro

  • Por ONutricional
  • 2 de dez. de 2017
  • 4 min de leitura

Por Mercês de Fátima dos Santos Silva e Everardo Duarte Nunes

Reproduzido da Revista Ciência e Saúde Coletiva (DOI: 10.1590/1413-812320172211.35002016)

Os grandes temas dos estudos de Josué de Castro, o problema da fome e da subalimentação, estão presentes na trilogia: Geografia da Fome (1946), Geopolítica da Fome (1951) e o Livro Negro da Fome (1960) e entram na agenda política do país a partir das discussões fomentadas nesses escritos. Tanto é assim que sua trajetória intelectual se confunde com os marcos norteadores da Política de Segurança Alimentar no Brasil.

É talvez por isso que partimos do pressuposto que Josué de Castro seja um autor controverso no debate intelectual brasileiro, oscilando entre o reconhecimento na construção de instituições científicas e políticas para formulações e ações de combate à fome e o esquecimento de seu legado intelectual nos debates acadêmicos como intérprete da realidade social brasileira, especificamente no campo disciplinar do pensamento social brasileiro.

Para alguns de seus estudiosos, Josué de Castro está indissociável e indiscutivelmente no palco do pensamento social brasileiro. Contudo, na hierarquia dos intérpretes brasileiros encontra-se no rol dos “esquecidos, esquecidos porque pouco lidos”. Entretanto, aponta-se que o ostracismo da obra de Castro é datado, deve-se ao Golpe Militar de 1964, momento em que teve seus direitos políticos subtraídos, integrando a primeira lista dos cassados da ditadura, ao lado de João Goulart, Jânio Quadros, Miguel Arraes, Darcy Ribeiro, Francisco Julião, Carlos Prestes, Leonel Brizola, dentre outros, quando teve seus livros banidos das prateleiras das bibliotecas das universidades e das escolas brasileiras.

Atualmente, a produção sobre o legado intelectual de Castro está em crescente expansão no campo de conhecimento das Ciências Sociais, da Geografia e da Nutrição, áreas que lideram as discussões. Em geral, são produções de um grupo de autores reduzidos, militantes do pensamento castrino, que tentam trazer a importância do nosso autor para a interpretação do Brasil. São produções, em sua maioria, marcadas por aspectos memorialísticos com objetivos de reavivar a obra e/ou artigos comemorativos e em homenagem ao cientista e/ou político.

Sendo assim, continuamos tensionando a assertiva de que as produções com posicionamento crítico e epistemológico de seu legado intelectual ainda são escassas e apresentam lacunas que precisam ser exploradas no debate público atual da sociedade brasileira, sobretudo, no campo da Saúde Coletiva.

Como nos revela Ribeiro, Silva e Cândido, antes do Golpe Militar de 1964, seus textos, Geografia da Fome (1946), Geopolítica da Fome (1951) e O Livro Negro da Fome (1960), tiveram grande impacto na geração de 1950 e 1960. Essas obras promoveram o debate público e influenciaram as produções acadêmicas acerca de uma realidade incômoda, a constatação de que há na sociedade brasileira alto índice de miserabilidade e de exclusão social, suscitando a questão reveladora de sua postura acerca do papel do conhecimento e do pensamento na produção de ações políticas voltadas para o combate das mazelas sociais.

Ribeiro e Candido nos chamam atenção para o fato de que a obra de Castro, envolta do debate sobre a nossa desigualdade social, possui uma lucidez para explicar as questões sociais e políticas acerca da nossa modernidade, que até então estavam sendo travadas, como nos revela Souza, sob a fragmentação do conhecimento e a fragmentação da realidade. Para Souza, essas fragmentações ocorrem porque nosso pensamento social brasileiro é conservador e foi produtor de uma inversão especular da realidade brasileira. Grosso modo, essa inversão especular produz ideias que parecem ser singulares e contrapostas ao pensamento conservador, mas não são. Por vezes, tais ideias promovem um espectro da nossa realidade a partir de ideias vindas de fora, produzindo uma sociologia brasileira “inautêntica”, sociologia que Castro classificava como não comprometida e ocultista da nossa realidade.

Não é nosso objetivo tecermos uma análise sobre a inautenticidade da sociologia brasileira, pressupondo que a produção do conhecimento brasileiro seja a mera repetição das ideias exógenas, mas testar nosso pressuposto de que há questões na obra castrina capazes de gestar atualmente uma crítica descolonizadora no pensamento social brasileiro, que nos inspira a crer no projeto de humanidade que seja capaz de superar os danos impostos historicamente pela lógica modernidade-colonialidade.

Ademais, como aponta Bastos, várias questões atualmente elucidadas nos debates acadêmicos e públicos sobre a realidade social brasileira foram, de diversas formas, objetos de reflexão dos autores brasileiros ao longo dos anos: a problemática da emancipação, o direito à diferença, os limites da liberdade, do reconhecimento e da exclusão social, temáticas recorrentes sobre a formação de um projeto nacional no cenário de colonialismo, escravidão, sucessivos processos antidemocráticos e extrema desigualdade na distribuição de renda. Entretanto, nos últimos tempos, o pensamento social brasileiro vem colocando estas mesmas questões sob outra ótica, conduzindo à produção de novas categorias analíticas que buscam apreender os fenômenos sociais em suas singularidades, com continuidades e descontinuidades com o debate anterior.

Entre os elos de continuidades e descontinuidades está o processo de descentramento teórico que vem ocorrendo ao longo das últimas décadas no pensamento social brasileiro. Esse descentramento refere-se ao conjunto de textos e trabalhos que questionam o fundamento eurocêntrico das ciências sociais e afirmam a necessidade de se levar em conta lugares de discursos intelectuais tidos como alternativos e/ou “periféricos”. Descentramento, que ao nosso ver, pode também ser encontrado na obra de Castro.

Assim, partimos do entendimento de que os debates anteriores, continuam enraizados no constructo simbólico ambíguo, não resolvido, construído a partir do ideário da democracia social. Estes debates nos obrigam a exercer o descentramento para nosso autoconhecimento e reconhecimento da nossa sociedade tal como ela se apresenta, sem cópias padronizadas de culturas externas a nossa, sem naturalização de desigualdades sociais, causado por uma leitura distorcida da nossa realidade.

Essa distorção ou miopia sobre o real, superficial, fragmentada e seletiva que aponta para os efeitos e as consequências dos problemas sociais brasileiros e não para sua causa, ou para as várias causas, como contemporaneamente Castro e outros intérpretes do “rol dos poucos lidos” apontavam. Castro denunciava que a visão descomprometida com a realidade fazia do Brasil um país de famintos, que empurrava para 1/3 da população a condição de exclusão e miséria, que, segundo Souza, se produziu e se reproduziu durante todo o processo de modernização à brasileira, gerando a “ralé brasileira”.

[O texto prosseguirá com a apresentação de dois limites analíticos]: de um lado, a afirmação de que a obra de Castro não tem a devida atenção nos debates acadêmicos e públicos, e, por outro lado, que o descortinar da sua obra possibilita certo entendimento da sociedade atual.

Continua...

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