Biopoder no jornalismo em saúde: vozes autorizadas quando a pauta é alimentação
- Por ONutricional
- 26 de nov. de 2017
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Do Observatório Brasileiro de Hábitos Alimentares, por Mariella Oliveira-Costa:
"A imprensa é um dos espaços que podem ser utilizados para a promoção da saúde. Desde a Carta de Ottawa, a mídia de massa é apontada como importante aliada do setor saúde para melhoria da qualidade de vida das pessoas. E de fato, no Brasil, os jornalistas são apontados como fonte confiável de informação em saúde, atrás apenas da categoria médica, segundo pesquisa divulgada pelo Conselho Federal de Medicina, em 2014. Em que pese o avanço das redes sociais virtuais, uma informação divulgada na imprensa possui alcance e credibilidade consideráveis no imaginário popular, pois os meios de comunicação auxiliam na tomada de decisão individual e na mudança de hábitos, possibilita que a sociedade monitore a agenda pública da saúde e de outras áreas, divulga novidades e influencia nos temas sobre os quais as pessoas vão falar.
Dentre os diferentes temas da promoção da saúde, a alimentação saudável é um dos mais frequentes na imprensa porque interessa cotidianamente à população. Porém, muitas vezes as informações jornalísticas mais confundem que informam. Um dia o ovo faz bem, no outro, faz mal, obviamente conclusões fruto de pesquisas com sujeitos diferentes, contextos diferentes e que nem sempre são explicitados pelos jornalistas.
Um dos eixos de pesquisa da antropologia da alimentação refere-se à análise das transformações do comportamento alimentar e das pressões sociais e econômicas que nele interferem. A imprensa pode ser entendida como componente desse sistema de pressão que atua no comportamento alimentar das pessoas, já que as decisões relacionadas à alimentação estão longe de serem resultado apenas do pensamento racional. Se antigamente havia grande peso nas referências culturais para tomada de decisão alimentar, hoje, as pessoas são mais suscetíveis às pressões desta instituição não só por meio da publicidade e propaganda, mas também com os textos jornalísticos. A mídia então, pode ser considerada como espaço de regulação e controle, e a imprensa é instancia que legitima determinados discursos, dando a eles status de verdade e garantindo que determinadas opiniões sejam consideradas como norma para os leitores. É importante, portanto, compreender quais vozes são selecionadas pelos jornalistas para informar sobre a saúde durante o processo de produção jornalística.
Pesquisa realizada na Universidade de Brasília analisa tanto a imprensa nacional brasileira como a regional, e quando o tema é alimentação, observa-se que as falas que aparecem nas páginas dos jornais, são predominantemente especializadas. É o cientista, o profissional de saúde, o governo quem diz o correto e adequado para a alimentação das pessoas, enquanto que a população fica relegada a segundo plano, geralmente ilustrando casos e maus exemplos sobre o que não fazer em saúde.
Na Folha de São Paulo, principal jornal impresso pago do Brasil, o discurso científico aparece como recomendações e análises de pesquisas recentes, com citação de periódicos, associações científicas e falas de profissionais da saúde e pesquisadores legitimando as afirmações. A linguagem utilizada parece refletir interesses da ciência, das indústrias médico-farmacêuticas e de alimentação e nutrição, e dos profissionais de saúde. O jornal regional carioca O Dia traz também o predomínio dos profissionais da saúde e de cientistas como fonte de informação, com pouca expressão da população nos textos. A Carta de Ottawa, primeiro documento que apresenta as bases institucionais da promoção da saúde, define que a promoção da saúde como “o processo de capacitação da comunidade para atuar na melhoria da sua qualidade de vida e saúde, incluindo maior participação no controle desse processo”. Porém, quando a população aparece, sua voz está ligada mais frequentemente à mudança de alimentação para fins estéticos, como neste trecho de reportagem: “Agora, meus filhos me desenham com uma aparência linda e magra. Eu não sou mais uma mamãe gordinha”.
A biopolítica, segundo Michel Foucault, regulamenta a população através do biopoder que atua na vida das pessoas, fazendo a gestão das decisões individuais e coletivas por estratégias que não estão em nenhuma lei, mas imbricadas em atitudes cotidianas. Pela microfísica do poder, o poder na contemporaneidade está diluído em todos os setores da sociedade sob a forma de relações e rede de micro-poderes que vão regulando a vida por meio de técnicas diversas para controlar a população e subjugar os corpos. Sob esta perspectiva, há que se levar em conta a força do saber especializado e do discurso científico que legitima as informações em saúde. Os profissionais de saúde, especialistas, as revistas científicas e instituições de pesquisa tem autoridade sobre temas científicos. Pode-se perceber certa estratégia biopolítica na apresentação desses conteúdos de alimentação, a partir dessas vozes autorizadas, científicas. O biopoder toma forma nestes contextos informativos sobre a saúde na medida em que a fala do especialista ocupa papel central das reportagens sobre alimentação, em detrimento da fala da população, que figura apenas como ilustração do que não deve ser feito. Esse poder de controle da ciência sobre o saber relacionado à saúde e os alimentos propaga a informação com status de verdade, e pode modelar as formas de vida e de atitude das pessoas. Obviamente as vozes especializadas podem informar e capacitar muito a população, mas poderia o jornalismo trazer em maior frequência a voz da própria população, como bons exemplos e atitudes sobre o tema da alimentação.
Nossa crítica reside, portanto, no fato de que, da mesma forma que os profissionais de saúde, os especialistas, as revistas científicas e instituições de pesquisa tem autoridade sobre temas científicos, a alimentação e a saúde possuem componentes para além desse saber especializado, e o protagonismo da população nos textos, com pessoas que vivem determinadas situações de maneira a garantir a sua saúde, sem medicalização e intervenções, mas com exemplos positivos, construídos nas famílias e comunidades sem qualquer relação com o saber científico pode também favorecer o entendimento dos leitores e tornar a informação mais palpável. Pessoas comuns, podem ser inseridas nos textos jornalísticos como fontes, sem que seja em detrimento da “voz autorizada”, seja ela o cientista, o governo, o profissional da saúde. Afinal, qualquer informação sobre saúde que está nos jornais tem como público as pessoas comuns, que poderiam figurar mais como fonte dos textos, não só como maus exemplos em saúde, mas apresentando experiências positivas que mostrem sua participação na manutenção de sua saúde e sua conscientização.
Não se nega aqui, de forma alguma, o potencial que a informação em saúde, dada pelo especialista e transmitida pelos jornais, tem para a população. Ancorar-se no conhecimento científico, obviamente, é também uma forma de aumentar a capacidade de decisão da população, afinal, a voz autorizada, científica, pode expressar importantes avanços. Mas limitar as informações apenas a esta voz científica, além de distanciar o leitor da informação, pode incorrer nas simples prescrições e recomendações normativas de regulação da vida, que pouco ou nada contribuem para a promoção da saúde. Em se tratando de alimentação, é preciso repensar as vozes autorizadas no jornalismo em saúde!"
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