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Escolher ser a vidraça

  • Joralima
  • 24 de mai. de 2017
  • 4 min de leitura

Por Jorge de Lima.

Desde a faculdade, venho lendo, às vezes também falando e, raras vezes, escrevendo sobre educação – essa panela na qual todo mundo mete a colher. Quis o destino que, na primeira terça-feira deste mês de maio, eu confrontasse a realidade dessas minhas palavras, permanecendo em pé em uma sala de aula de ensino fundamental, na periferia de uma pequena cidade litorânea de São Paulo (menos de 100 mil habitantes).

Importante registrar que minha chegada se deu ao final do primeiro trimestre letivo, portanto, com as turmas já em andamento.

Na sala, o tempo parou: cinquenta minutos arrastaram-se e todas as minhas certezas e também minhas teorias e opiniões sobre educação se evaporaram diante dos fatos. Fui de pedra à vidraça em poucos instantes – e os cinquenta minutos seguintes, já na próxima sala de aula, não foram diferentes: eu suava em bicas.

A cena era-me de caos: os alunos pulavam de um lugar para o outro como naquelas ilustrações animadas sobre o comportamento dos átomos dentro de uma reação. Quase todos falavam ao mesmo tempo. O que mais me desesperava eram uns três ou quatro alunos (dentre uns trinta em cada sala) que me imploravam para que eu lhes desse aula – como se aquilo me fosse minimamente possível!

Fui resgatado do estado de pânico e frustração pelo corpo docente da escola tão logo cheguei à sala dos professores – lugar que eu nunca havia frequentado na nova condição de regente. E ainda bem que esse resgate foi uma ação solidária e rápida, pois eu já estava pronto para retirar meu jaleco branquinho, metê-lo na mochila, junto com os livros e as esperanças, e nunca mais aparecer por aquelas bandas...

Os colegas tranquilizaram-me e ainda acrescentaram: eu dera sorte, aquelas duas primeiras classes nem eram as mais complicadas.

Na academia, tanto no bacharelado, quanto na licenciatura e na especialização, aprendemos que há muito para ser feito pela educação e que a primeira das coisas é reverter o discurso pessimista dos atuais professores – que desejam lecionar apenas para um aluno ideal: que faz lição de casa, que corta e limpa as unhas e que não é indisciplinado.

Pelo que vi, a primeira providência não é mudar o discurso do professor: é mudar a realidade. Começando por ouvir e ouvir e ouvir o que esses profissionais têm a dizer sobre o alunado, pois são eles que estão diariamente diante de uma clientela das mais complexas. E também ouvir o que eles sabem sobre a escola, a comunidade, a gestão (tanto nas instituições privadas quanto nas públicas), a escolha do material didático...

Claro, também urge ouvir alunos e seus familiares: entender motivações, saber o que eles acham das aulas, o que pensam sobre os livros, sobre o uniforme ou sobre os horários da escola.

Porém, ao mergulhar na realidade, das muitas potenciais decepções, o que achei mais complicada foi a questão do material didático: com uns dois dias de antecedência, tive acesso ao livro-texto do sexto ano. Li tudo, palavra por palavra, da apresentação até as informações gráficas relativas ao tipo de papel utilizado – inutilmente.

O livro incorpora conceitos e arranjos visuais interessantes e modernos, inclusive separando o conteúdo em partes distintas: produção de texto, literatura e linguagem – uma mencionando a outra, como se fosse a indexação de uma página na internet. E o texto do livro fala diretamente com o aluno, tratando-o com inteligência.

Só que talvez sirva para um aluno idealizado, de cidade grande, com pleno domínio da leitura, que saiba mobilizar múltiplos conhecimentos. Um aluno que provavelmente acesse a internet a partir de um computador desktop (de mesa), acostumado, portanto, a fazer leitura dinâmica e visual – das margens dos textos, dos hipertextos (links), das postagens e etc.

Quando tirei os olhos do livro e mirei a classe, vendo seus cadernos, relendo seus textos, ouvindo suas leituras, percebi que eu estava diante de turmas que mal conseguiam trazer consigo o conteúdo lido no parágrafo anterior, por vezes, perdendo até o que fora lido na linha anterior ou uma palavra antes. Para a maioria daqueles alunos, a aula de ontem parecia ter acontecido em vidas passadas, em um mundo distante...

Ou seja, o livro foi uma escolha ousada, até bonita – mas infeliz para aquele contexto (e terá que ser trabalhado por três longos anos). Logo, o segredo será utilizar o livro, para não desperdiçá-lo, mas mobilizar outras ferramentas para tentar dispor o conteúdo de uma maneira sequencial e mais simplificada – na esperança de que um mínimo seja metabolizado por aqueles jovens antes de o ano escolar acabar.

Ironicamente, ao vaticinar a solução acima para o aproveitamento do livro, confirmei, com minhas palavras atuais, minhas manifestações de outrora: quatro dias de experiência e já estou “dando aula” de como “dar aulas”. E já estou até resolvendo problemas!

Essa é, definitivamente, uma maldição da educação: ter um expert em cada esquina.

***

Voltei às salas nos três dias seguintes: transformado.

Munido de uma prancheta, uma caneta e uma folha de papel, fui (aparentemente) distribuindo pontos negativos para toda sorte de indisciplina na minha frente, aplicando justiça muito mais do que dando aulas (depois, desconsiderei boa parte das “punições”). Não foi uma regência de aula, foi um adestramento – macaqueando as teorias repressivas citadas pelo Foucault.

No terceiro dia, já tendo participado de uma reunião com mãe, separado uma briga na qual voaram cadeiras arremessadas pelos contendedores e participado da suspensão de uma aluna, contemplei as classes quietas e fazendo lição: um pouco satisfeito, um pouco aliviado, mas sem a menor esperança de encontrar essa situação de pacificação na semana seguinte – ou seja, sabendo que terei que começar de novo todo o processo. Todos os dias.

***

Mas, como diriam os poetas: “se até os espinhos têm flores...”. Dar aula não é sadismo. Algumas situações foram, sim, recompensadoras – tais como ver o rosto de um ou outro aluno iluminar-se ao entender e, finalmente, acertar; ver a classe, outrora receosa de ler em voz alta, disputando pela primazia de ler uma questão ou responder a outra; ver alunos cobrando o desafio da próxima aula (um quase disfarce para a odiada lição de casa).

Secretamente, devem ser essas pequenas vitórias que mobilizam os mais de 500 mil professores atuantes no estado de São Paulo – e tantos outros milhões de docentes atuando no Brasil e no mundo.

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