Os bastidores da relação dos governos brasileiros com a mídia corporativa
- Por ONutricional
- 18 de abr. de 2017
- 5 min de leitura

ONutricional reproduz o texto de Israel do Vale, publicado em 17 de abril no site da Midia NINJA.
---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
Há uma passagem na fábula política recente que ilustra com primor a queda de braços permanente entre o governo e as grandes corporações da mídia brasileira. Franklin Martins, à época ministro da SECOM, propôs a Lula que o governo provocasse uma aproximação com a Record. A lua de mel foi inesquecível.
___
A nova safra de denúncias do dedo-durismo premiado expõe mais uma vez a assimetria da imprensa no tratamento dos acusados. E não se trata aqui de assumir a defesa de quem quer que seja, mas de apontar o desequilíbrio da cobertura, na tentativa de criminalizar alguns mais que outros, com evidentes terceiras intenções eleitorais.
Há uma tendência gritante da mídia corporativista de esconder os malfeitos de amiguinhos & aliados – aqueles que contratam a$$inatura$ de jornai$ e revista$ no atacado (para toda a rede de ensino, por exemplo) ou são mais genero$o$ na distribuição das campanha$ de governo e dos anúncio$ das estatai$.
Esta semana foi pródiga nisso. Numa tacada, o governo loteou, pornograficamente, a verba de mídia entre os parlamentares, permitindo inclusive que fossem direcionadas para suas próprias emissoras – o que, de saída, já vai contra o que reza a Constituição.
Noutro movimento de exímia falta de sutileza, inundou os intervalos do JORNAL NACIONAL com uma propaganda muito mais longa que o padrão, do Banco do Brasil, entre os capítulos da novela do dedo-durismo. É a fatura do silêncio associada ao berrante que a boiada parlamentar sabe ouvir.
Um minuto de comercial na Globo custa US$ 140 mil. É o equivalente a R$ 440.510,00, na cotação de ontem. Sim, a cada exibição. E como $impatia é quase amor, basta fazer as contas e avaliar com que palavras e com que tempo Temer tem sido tratado na cobertura das delações..
A aliança com a mídia corporativista é duplamente benéfica para os veículos
Para além do que as denúncias apontam (e que, evidentemente, merece apuração e comprovação), Lula e Dilma pagam o preço de terem cutucado dragão com vara curta, ao tentarem criar e bancar critérios (bastante discutíveis, diga-se) para a distribuição da verba de mídia. De outro lado, são vítimas da timidez e dos equívocos de como as políticas de comunicação foram conduzidas nos seus mandatos.
Há uma passagem na fábula política recente que ilustra com primor a queda de braços permanente entre o governo e as grandes corporações da mídia brasileira.
A certa altura da gestão Lula, o então ministro Franklin Martins foi chamado a apresentar um caminho capaz de fazer frente ao achaque permanente das Organizações Globo, sempre alerta e atuante na defesa dos seus interesses.
Franklin propôs a Lula que o governo provocasse uma aproximação com a Record – na sua avaliação, a única emissora capaz de ganhar musculatura e atuar em contraponto, oferecendo uma pauta menos desequilibrada, quiçá, positiva. Era mudar para não mudar. Sustentar o mesmo jogo, em mão invertida, e potencializar a disputa ferrenha que já existia entre as duas emissoras.
Assim foi feito. Nos anos subsequentes, o Governo Federal desaguou um oceano de dinheiro na Record. E isso se traduziu em certa simpatia no temário e no tratamento da pauta jornalística da emissora, seja nos telejornais ou em programas de reportagem.
A lua de mel foi inesquecível – com selfies de lado a lado. Permitiu que a Record se tornasse a Globo cover que virou na última década – da paleta de cores de cenários e vinhetas ao formato dos programas, sem esquecer dos profissionais que foram subtraídos da concorrente a peso de ouro. E os pombinhos (Governo Federal e Record) estavam fadados a serem felizes para todo sempre – no que é mais conhecido como “eterno enquanto dura”...
Em dado momento, já no governo Dilma, a presidenta e o bispo tiveram que enfrentar aquela “dêérre” típica das relações duradouras. Às vésperas da votação da admissibilidade do processo de impeachment pela Câmara dos Deputados, o staff de Dilma fez as contas e concluiu que a água já estava bem acima do joelho. E a presidenta, pessoalmente, foi levada a entrar no circuito do “deixa disso”.
Dilma liga então para Edir Macedo, num diálogo relatado por gente graúda do governo que testemunhou a cena e poderia ser transcrito (em versão algo livre) da maneira que segue.
“Muito obrigada por me atender, bispo. Eu ligo porque nós estamos muito preocupados com os rumos dessa votação e o retrocesso que ela pode representar para o país. Em nome das boas relações que nós construímos com o senhor, a Record e a Universal ao longo destes anos, eu peço a sua atenção e a sua intervenção, pra que tudo que nós construímos não se perca”.
O bispo ouve atentamente, sem dar um pio. “O senhor é um homem muito respeitado pela bancada do PRB e nós contamos com o seu apoio para que ela não deixe o processo de impeachment prosperar”. O PRB é considerado o braço político da Igreja Universal do Reino de Deus. O partido detém 22 cadeiras na Câmara nessa legislatura. Ao final do relato da presidenta, Edir toma a palavra:
“Presidenta, a senhora sabe do meu apreço e do meu respeito pela senhora. E eu queria que a senhora soubesse que eu vou orar muito pela senhora. Mas a Record é a Record, a Universal é a Universal e o PRB é o PRB. Muito obrigado pela gentileza da sua ligação. Eu desejo boa sorte para a senhora. Passar bem”.
Na votação, a bancada toda, sem exceção, se posicionou a favor da abertura do processo de impeachment.
Moral da história: não se alimenta um monstrinho imaginando que, com o tempo, ele possa virar um anjo. Quando cresce, um monstrinho normalmente vira um monstrão.
O bastidor das relações entre a mídia corporativista brasileira e os governos é um circo de horrores. Lastreado num oligopólio que permite que meia-dúzia de famílias defina o que 90% da população do país ouve e vê (ou, pior: não ouve e não vê) e como cada assunto de importância é tratado e apresentado à opinião pública.
O pano de fundo disso é a falta de instrumentos de controle social que permitam que se tenha um ecossistema de comunicação mais saudável, capaz de assegurar uma pluralidade maior de vozes e interesses no mercado de comunicação – e no acesso à informação como direito essencial.
Não há democracia consolidada no mundo que não regule sua mídia. E enquanto esse tema for tratado como tabu no Brasil, não haverá uma democracia de fato. Porque não existe democracia sem uma mídia democrática.
E não me venham falar em censura, por favor –que é o como a grande família do oligopólio (reunida em torno da mesa do Instituto Millenium) e os autômatos do ódio e da intolerância respondem, em bloco, quando se fala em regulação.
Não há censura maior, afinal, do que impedir que um tema, qualquer que seja ele, possa ser debatido abertamente pela sociedade.
Kommentare