top of page

As ideias de Vigotski e o contexto escolar

  • Por ONutricional
  • 2 de abr. de 2017
  • 7 min de leitura

Por Ingrid Lilian Fuhr Raad

Doutorado e mestrado em Educação com Graduação em Pedagogia pela Universidade de Brasília (UnB), professora da UnB e do Centro Universitário de Brasília, Brasília, DF, Brasil

Publicado originalmente na Revista de Psicopedagogia, v.33, 2016.

O presente texto tem como proposta refletir a respeito do modo como são apropriados os conceitos desenvolvimento e aprendizagem na perspectiva da teoria histórico-cultural, por profissionais que atuam no espaço escolar. Destarte, de que espaço escolar se está falando?

Atualmente, a instituição escolar estruturada e organizada à luz de uma política de Estado de Educação, caracteristicamente neoliberal, guiada pelas exigências do Banco Mundial, visa atender às exigências do mercado. Para tal, o ensino está estruturado de maneira a homogeinizar e padronizar o ritmo e o resultado do aprendizado. Para isso, todo estudante deve iniciar sua vida escolar aos quatro anos de idade, cumprir todos os anos escolares com seus ritos e ingressar em uma faculdade para que se torne um cidadão capaz e produtivo. O conteúdo escolar é predefinido em cada ano e o interesse do estudante não é considerado. Tudo deve estar sob controle e programado previamente.

A escola, em sua estrutura, apresenta um modo muito particular de organizar o espaço, o tempo e o modo de conceber o que venha a ser o ensino, o estudo e o aprender. A aprendizagem é compreendida como resultado, expresso em números ou menções, e o bom aluno é aquele que obtém boas notas. Portanto, cabe ao estudante memorizar os conteúdos para obter ótimas menções ou notas.

Desse modo, a avaliação que deveria ser processual e contínua, com vistas a identificar falhas ou entraves no processo de ensino-aprendizagem, serve para mensurar o tanto que o estudante memorizou e soube responder às questões da prova. Com essa concepção de avaliação, classificatória e somatória, entende-se que a aprendizagem pode ser medida e quantificada, como se o professor tivesse a capacidade de controlar o aprender de seus alunos.

Calcada nessa lógica, a escola adestra e tutela estudantes e professores. A todo o momento, o estudante é induzido a não duvidar e questionar e o professor, a obedecer à lógica instituída de controle social. Por meio de ferramentas institucionais, muitas delas coercitivas, a comunidade escolar exerce o controle social.

Concordo com Hanna Arendt (1), ao conceber a Educação como um movimento de transformação constante, de atitude pessoal de abertura ao mundo, em que as tradições são preservadas na tensão existente entre o passado e o futuro. Lamentavelmente, a educação foi reduzida a um ensino de conteúdos fragmentados e, na maioria das vezes, desarticulados. A concepção de educação vigente nega o espaço do pensar autônomo, como ato político, do debate, do diálogo e da reflexão (1). Ou seja, uma instituição de ensino que por princípio deveria instigar a curiosidade do estudante e a vontade pelo estudo, opta pela mecanização, pelo embrutecimento humano, aniquilando a possibilidade da ação autônoma.

Diante da caracterização do modelo de educação e de escola na contemporaneidade, há uma prática muito comum na formação de pedagogos, de psicólogos e de psicopedagogos, que sustenta essa prática cientificista, que é a apropriação de teorias psicológicas de ouvir falar. Isto é, o estudo de teorias da Psicologia de modo indireto, não se estuda a obra do autor, mas de quem fala dele. Um elemento complicador é a problemática que envolve a tradução. Além disso, há os modismos, que, de décadas em décadas, privilegia um teórico em detrimento de outros. Essa convergência de fatores compromete a compreensão de conceitos fundantes de uma

teoria. Um exemplo disso é a teoria de Vigotski, que chegou ao Brasil na década de 1980 via tradução norte americana. Alguns conceitos são confundidos por serem, geralmente, associados a teorias da matriz naturalista, por exemplo, os conceitos desenvolvimento, obutchenie e mediação.

Obutchenie foi traduzido como aprendizagem, contudo a palavra aprendizagem não existe na língua russa. Em sua tese de doutorado, a Profa. Zoia Prestes (2) traduziu o conceito obutchenie como instrução, sendo uma atividade que é processual e que seu sentido encontra-se nela mesma, ou seja, "a atividade contém nela própria os elementos que promovem o desenvolvimento". O conceito obutchenie é reflexivo, admite o instruir-se, o que difere do conceito aprendizagem, que não é processual e autônomo, pois visa ao resultado.

Em seu artigo sobre a análise pedológica do processo pedagógico, Vigotski define que os processos de obutchenie:

"despertam na criança uma série de processos de desenvolvimento interno, despertam no sentido de que os incitam a vida, põem em movimento, dão partida a esses processos. No entanto, entre a marcha desses processos de desenvolvimento interno despertados pela obutchenie e a marcha dos processos da obutchenie escolar, entre a dinâmica de ambos, não existe paralelismo" (3).

Vigotski (4) analisa a relação entre os processos de instrução e de desenvolvimento, presentes no espaço escolar. Ele afirma que a boa instrução é aquela que antecede o desenvolvimento. Não se trata de instrução como técnica e treino de funções já desenvolvidas, mas de possibilitar as condições para o desenvolvimento de funções psíquicas. Na atividade obutchenie, traduzida como instrução, certamente, há condições estruturais que possibilitam a passagem da adaptação social para a individual.

Na atividade de instrução, estão presentes intencionalidades daquele que deseja ensinar e do outro que quer aprender. Ou seja, há uma disposição autônoma de vulnerabilidade de ambas as partes. Não se pode deixar de mencionar que um livro pode fazer o papel desse outro, pois o que move a pessoa é a necessidade de instruir-se.

"Parece que os processos de instrução despertam na criança uma série de processos de desenvolvimento interno, despertam no sentido de que os incitam à vida, os põem em movimento, dão partida a esses processos. No entanto, entre a marcha desses processos de desenvolvimento interno despertados pela instrução e a marcha dos processos da instrução escolar, isto é, entre a dinâmica de ambos, não existe paralelismo" (4).

O desenvolvimento apresenta uma lógica e um ritmo próprios não atrelados ao programa escolar. A marcha desses dois processos, a instrução e o desenvolvimento, é dinâmica e não se dá paralelamente. Trata-se de dois processos que têm relações internas complexas (5). Preocupado com a instrução escolar, Vigotski (4) destacou que a instrução, para ser autêntica, deve incitar o desenvolvimento, criando as possibilidades de neoformações psíquicas.

"Se a instrução utiliza apenas as funções já desenvolvidas, então, temos diante de nós um processo semelhante de instrução do escrever à máquina. Vamos esclarecer bem a diferença entre ensinar a escrever à máquina e ensinar a escrita à criança. A diferença é que, se começo a escrever à máquina, não ascendo a um estágio superior da fala escrita, apesar de poder receber uma qualificação profissional. A criança, por sua vez, adquire um saber e toda a estrutura de suas relações e da fala altera-se: de inconsciente torna-se consciente, de um mero saber transforma-se em saber para si. Somente é boa a instrução que ultrapassa o desenvolvimento da criança. [...] Existem fundamentos para supor que o papel da instrução no desenvolvimento da criança consiste em criar a zona de desenvolvimento iminente" (4).

Cabe destacar que o conceito de desenvolvimento na teoria histórico-cultural de Vigotski é bastante complexo, pois envolve movimentos de avanços e recuos, de transformação dialética, sem ser hierárquico e com pré-requisitos. Pode-se afirmar que se trata de condução autônoma e voluntária das funções psíquicas, ou seja, o autodesenvolvimento.

Nos anos 20 do século passado, em sua obra Psicologia Pedagógica, Vigotski (6) deixava clara sua posição marxista ao enfocar a necessidade de uma pedagogia ativa de base científica, em que o professor teria uma atitude de pesquisador, de cientista, não de transmissor, simplesmente, de conteúdos. Nessa perspectiva, ele criticava radicalmente a escola, que se ocupava simplesmente da transmissão de conteúdos desvinculados da vida, isto é, um ensino que se utiliza de estratégias e situações artificiais sem sentido no processo educativo desenraizado da vida. Conforme diz: "Na própria natureza do processo educativo, em sua essência psicológica, está implícita a exigência de um contato e de uma interação com a vida que sejam o mais estreito possível" (6).

Para Vigotski, o professor é o organizador do ambiente social, "que é o único fator educativo". Ou seja, ele cria as possibilidades para que ocorra a instrução, que modo a transformação do desenvolvimento iminente em atual. Nas palavras de Vigotski:

"O processo pedagógico é a vida social ativa, é a troca de vivências combativas, é uma tensa luta em que o professor, no melhor dos casos, personifica uma pequena parte da classe - com frequência, ele está totalmente só (5). Em suma, só a vida educa e, quanto mais amplamente a vida penetrar na escola, tanto mais forte e dinâmico será o processo educativo. O maior pecado da escola foi se fechar e se isolar da vida mediante uma alta cerca. A educação é tão inconcebível à margem da vida como a combustão sem oxigênio ou a respiração no vácuo. Por isso, o trabalho educativo do pedagogo deve sempre estar vinculado ao seu trabalho social, criativo e relacionado à vida" (6).

Afirmar que o professor é mediador, é reduzí-lo a uma ferramenta cultural, a um meio que possibilita o acesso ao conhecimento. Essa ideia está calcada na tutela, crença em inteligências superiores e inferiores, e contradiz a ideia libertária de Vigotski, de que o indivíduo conduz autonomamente seu processo de instrução. A mediação é semiótica, isto é, a palavra é que possibilita o acesso ao conhecimento e à cultura. O signo é uma ferramenta cultural criada pelo homem, que possibilita o desenvolvimento das funções psíquicas.

Na lógica do professor-mediador, este torna-se o mestre embrutecedor, nas palavras de Rancière (7), aquele que adota o princípio da desrazão, que tem a necessidade de tudo explicar por reconhecer e afirmar (8), a incapacidade do estudante ao definir para ele "o que deverá aprender, como, quando e em que velocidade."

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

1. Arendt H. Entre o passado e o futuro. Trad. Barbosa MW. São Paulo: Perspectiva; 1979.

2. Prestes Z. Quando não é quase a mesma coisa: análise de traduções de Lev Semionovitch Vigotski no Brasil, repercussões no campo educacional [Tese de Doutorado]. Brasília: Faculdade Educação, Universidade de Brasília; 2010. 295p.

3. Vigotski LS. Psirrologuia razvitia rebionka. Moskva: Eksmo; 2004.

4. Vigotski LS. Sobre a análise pedológica do processo pedagógico. In: Prestes Z. Quando não é quase a mesma coisa: análise de traduções de Lev Semionovitch Vigotski no Brasil, repercussões no campo educacional [Tese de Doutorado]. Brasília: Faculdade Educação, Universidade de Brasília; 2010. 295p.

5. Vigotski LS. Obras escogidas II. Pensamiento y linguagem. Trad. Bravo JM. Madrid: Visor; 1997.

6. Vigotski LS. Psicologia pedagógica. Trad. Schilling C. Porto Alegre: Artmed; 2003.

7. Rancière J. O Mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Belo Horizonte: Autêntica; 2004.

8. Tunes E, Bartholo RSJ. Dois sentidos do aprender. In: Martínez AM, Tacca MCVR, eds. A complexidade da aprendizagem. Campinas: Alinea Editora; 2009. p.11-29.

Comments


Posts recentes
bottom of page